Negociação com Trump envolverá ‘um Judiciário não tão independente como no Brasil’, diz especialista
A advogada pernambucana Fernanda Burle conheceu de perto os bastidores do lobby na capital federal americana. Lidou, inclusive, com o Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês), órgão que, a mando do presidente Donald Trump, abriu na terça-feira, 15, investigação sobre práticas comerciais do Brasil. A experiência de Fernanda vem da época em que, por dois anos, dirigiu a divisão internacional do Conselho de Negócios Brasil e Estados Unidos, da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, em Washington.
O Conselho, estabelecido em 1976, é o braço responsável por, dentro da Câmara, fazer a promoção do livre-comércio entre os dois países e ajudar empresas americanas a fazer negócios e investir no Brasil, em especial aquelas com operações no País.
A Câmara de Comércio dos Estados Unidos é, por sua vez, a maior entidade de lobby do mundo, congregando cerca de 3 mil entidades americanas, como as associações empresariais estaduais e setoriais, para que possam influenciar o Congresso americano.
É como se o Brasil tivesse uma associação atuando em Brasília que representasse as federações das Indústrias de São Paulo (Fiesp) e do Rio de Janeiro (Firjan), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), ao lado das associações de serviços, comércio e de agronegócios.
Com a experiência nesse meio, Fernanda Burle afirma que a estratégia de Trump de recorrer ao USTR tem uma motivação mais de exercer pressão sobre o Brasil e assustar os seus negociadores do que, de fato, encontrar justificativas para o aumento de tarifas contra as vendas do País. O processo todo tem um rito que pode levar a mais de um ano, ela observa, e as negociações comerciais entre os dois países podem levar menos tempo.
A advogada defende que o Brasil responda com mais dureza, com ameaças de retaliação na área de patentes, “o que causa medo nos americanos”, e não acredita que a judicialização nos Estados Unidos contra a aplicação das tarifas possa surtir resultado, já que os juízes indicados por Trump estão alinhados com a Casa Branca.
O que significa Trump colocar o USTR para investigar o Brasil?
O USTR fica do lado do escritório da Câmara de Comércio, onde eu trabalhava em Washington. Então, conheci bem a sua atuação. Ele seria o equivalente a um Ministério do Desenvolvimento, mas com um pouco de Itamaraty e de Receita Federal. Ele passa por cima de qualquer ministério. Passa por cima até do secretário de Comércio. Só o Tesouro tem mais força do que ele e acumula mais poder. Hoje, o Jamieson Greer é o representante do USTR, mas no primeiro mandato de Trump a posição era do Bob Lighthizer, o criador de muito da estratégia atual de tarifas. Ele é o mentor do Greer, que ainda dizem que responde a ele. Ele é mais a eminência parda. Agora, Trump está fazendo tudo que o Lighthizer queria fazer no primeiro mandato e não estava conseguindo. Estive com ele há dois meses. Perguntado sobre os impactos no mercado dessa estratégia, ele disse que a volatilidade das tarifas veio para ficar, e que o mercado vai acabar se acostumando a ela.
Então, o USTR está mais alinhado à ala do governo que gosta mais de tarifas e se preocupa menos com os seus impactos nos mercados e na inflação, em vez da ala que seria mais pragmática, do secretário do Tesouro, Scott Bessent?
As pessoas alinhadas com Lighthizer têm uma visão muito antiga. Há muitas décadas se entendeu que o livre mercado traz benefícios. É claro que, com a pandemia, existiu movimento de volta ao protecionismo. Mas a mentalidade deles é muito retrógrada. Não têm a concepção atual de movimento de bens, de cadeia de valor global. Eles falam abertamente ‘por que vou fazer acordo com a Inglaterra? Para vender oito carros a mais?’ Eles reclamam do déficit comercial que os EUA têm com outros países e, quando se alega que não estão contabilizando o superávit de serviços, dizem “isso não conta, não”.
No caso do Brasil, é mais complicado para Trump justificar as tarifas, porque o País não tem nem superávit de bens contra os EUA. A investigação seria uma forma de justificar criar tarifas contra o Brasil? E por que, de fato, viramos o alvo da tarifa mais alta das anunciadas por cartas?
O Brasil nunca foi muito visado por causa desse déficit. É um dos poucos grandes que não têm superávit com eles. Viramos alvo, primeiramente, porque Trump está fazendo isso com o mundo todo. Em segundo lugar, mesmo que o pessoal tenha aliviado nas declarações oficiais, ele ficou incomodado com a reunião do Brics, no Brasil. E, em terceiro, tem a questão política, com a citação ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Daí, o USTR puxou a capivara do Brasil. Mas aquilo não faz sentido, reclamar de patentes, do sistema de pagamentos brasileiros, de anticorrupção, entre outras coisas. Resgataram coisas antigas. O USTR monitora permanentemente. Tudo entra lá, independentemente do peso ou de a questão estar resolvida. Então, eles puxaram tudo que mencionava o Brasil. Etanol era o único tema que estava ainda na pauta de reclamações dos EUA, dentre as coisas citadas.
Foi estranho mesmo o comunicado ter levantado a questão ambiental, sendo Trump vocal contra a agenda de sustentabilidade?
Sim, levantaram até isso, mesmo ele sendo contra essa agenda. Não faz sentido eles falarem disso, se não aderiram nem ao Acordo de Paris. Trump nunca quis reclamar do Brasil por isso. O governo de Joe Biden até levantou brevemente. Mas nada dessas questões faz sentido.
No Brasil, se fala muito que tudo isso é uma estratégia de ameaçar para depois negociar e tentar ganhar em algum ponto. Mas, ao recorrer ao USTR, será que Trump não quer aplicar mesmo a tarifa de 50% que anunciou?
A investigação dá mais pressão. É para assustar. Não é para aplicar. A pressão acontece com outros países. Não vai ser porque existe essa investigação que as tarifas serão mesmo aplicadas ou aceleradas. A investigação no USTR tem um rito. Não é algo de curto prazo. É preciso ouvir as empresas. Todo mundo dá a sua contribuição. O governo brasileiro vai poder mandar esclarecimentos. Falar que vai investigar serve muito mais para assustar e trazer para a negociação. As negociações vão ocorrer e devem acabar antes que o processo se conclua. A consulta pode durar um ano, depois ainda tem um período para definir medidas de retaliação. Leva bastante tempo.
Trump já usou essa seção 301 contra outros países, além do Brasil?
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Tinha contra a China um pedido de investigação em seção 301, na questão de serviços digitais, e havia uma reclamação de que as empresas americanas estavam usando a Inglaterra como paraíso fiscal. Mas tudo isso aconteceu na primeira gestão do Trump.
Trump pode ter buscado esse caminho depois de ter recebido críticas por conta de que as ameaças de tarifas ao Brasil tinham muito caráter político, com menções ao julgamento de Bolsonaro, e pouco comercial, o que não justificava a alegação dele de que é uma emergência nacional?
Já houve uma judicialização das tarifas em outros casos, quando ele começou a revelar as ameaças de alíquotas que aplicaria aos países. A ação foi favorável em primeira instância à provocação feita por governadores contra as tarifas. Houve um recurso e, depois, eles perderam no tribunal. Então, agora, existe uma compreensão de que Trump teria o direito de taxar com base em legislação doméstica.
Nem se pode alegar que a taxação foi política, e não comercial, por ele ter citado Bolsonaro na carta?
Talvez, realmente, seja mais fácil ainda ter uma decisão favorável para uma ação reclamando que a medida contra o Brasil tem motivação política. Mas a questão é que a Suprema Corte está mais alinhada com ele.
Os EUA não têm o Judiciário independente como no Brasil. Trump já indicou a grande maioria de juízes de primeira instância. Então, não existe muita esperança de ganhar a ação. Lá, os juízes são indicados ou eleitos, em campanha por votos mesmo. As notícias que temos de advogados que mapeiam isso é que dois terços dos juízes são alinhados com ele. Além disso, existe a tradição de um Judiciário menos intervencionista. Caem esses casos para os juízes, e eles lá dizem que não vão julgar, com base na Constituição pequena, diferentemente da nossa, que é bem extensa. E que, se é uma questão política, deve ser tratada pelos políticos.
Mas, então, como Trump perdeu, num primeiro momento, o processo sobre ter direito a aplicar as tarifas comerciais, e não o Congresso?
Existiu no começo essa movimentação do Congresso, contestando o direito de aplicar tarifas, mas depois parou. Trump se valeu de lei que permite isso com base em emergência nacional. Ele fez o que nós, advogados, chamamos de circumvent. Ele contornou a questão. Pela lei, ele não poderia aplicar tarifas nem pela questão comercial, mas piora ao basear as justificativas em questões políticas. A primeira ação caiu para um juiz que não era alinhado com o Trump, mas depois ele recorreu e ganhou. E, se o caso chega à Suprema Corte, ele ganha. Então, acredito que não há muito prejuízo em o Brasil judicializar a questão, mas ninguém quer investir muito nisso, porque não dará resultado.
Qual seria um caminho melhor?
Dizer que os consumidores vão pagar mais por esse café do Brasil pode ter mais efeito, se escolhidos os atores certos. O que funciona para pressionar os EUA não será a diplomacia, ou o governo brasileiro. Mas, sim, as empresas americanas que compram esses insumos, principalmente, os compradores de aço. Eles têm mais dificuldades para encontrar outros fornecedores. O mais forte é usar o lobby das empresas americanas em cima do governo americano. O governo brasileiro já está um pouco com esse viés. O lobby tem de estar lá mesmo em Washington. Cada exportador brasileiro precisa procurar a associação de seus compradores.
Será a única forma de responder às ameaças com eficácia?
Além do lobby, outra área que costuma causar muito impacto pode ser se o Brasil retaliar em propriedade intelectual. Isso assusta muito os americanos, os setores de tecnologia e as farmacêuticas. Já trabalhei em demanda de um caso de algodão, na OMC (Organização Mundial do Comércio). Estava em Genebra e depois em Washington quando se chegou ao acordo. O que a gente fez? A gente criou uma coalizão de diversos setores e disse, ‘se continuar o subsídio para o algodão, não vou pagar a propriedade intelectual de nenhuma empresa americana’. Essa é uma forma de os países mais fracos do ponto vista do comércio ganharem uma disputa. O caso clássico foi do Equador, que suspendeu todo o pagamento de direitos autorais de toda música americana. Foi a primeira decisão OMC de retaliação cruzada. E era um caso sobre subsídios a bananas, e o Equador ganhou o direito de retaliação. No caso do algodão, era propriedade intelectual. Isso é mais forte. Afeta principalmente as farmacêuticas, que vão pressionar para isso não acontecer.
Então, o governo deveria ameaçar mais? Está todo mundo muito diplomático, o governo brasileiro, as empresas. Todo mundo com muito medo e diplomático demais. O pleito mais imediato é de adiar as tarifas. Todo mundo, não só no Brasil, tem medo de retaliar. Trump é meio desequilibrado. Se você tem uma economia muito forte, pode retaliar. Também ouvi de alguém do alto escalão da política, de cargo neutro, que tinha informações de que Bolsonaro faria um pedido para Trump baixar as tarifas. Isso faria sentido. Todos podem se beneficiar. Trump ganhou o apelido de TACO, sigla em inglês para Trump sempre se acovarda. Então, com um pedido do Bolsonaro, ele pode lucrar dizendo que se sacrificou pelo Brasil, e Trump terá uma razão para justificar voltar atrás.
Fonte: Estadão