Fundos serão obrigados a identificar CPF de beneficiário final para barrar crime organizado, diz secretário
Adriana Fernandes Bruno Boghossian Idiana Tomazelli
Brasília
Após a megaoperação que desvendou a infiltração do crime organizado no setor financeiro, os fundos de investimento serão obrigados a identificar o CPF do beneficiário final dos recursos para barrar o crime organizado.
“O gestor do fundo tem um cliente, e vai ter que informar para a Receita o cliente real, não o fundo. Não o terceiro fundo, o quarto fundo. Ele terá que indicar o CPF que está no final da cadeia, inclusive se ele estiver no exterior, que é uma outra forma também de ocultar”, antecipou ao C-Level Entrevista, videocast semanal da Folha,o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas.
Batizada de Carbono Oculto, a operação apontou que ao menos 40 fundos de investimento são controlados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). “Eu estou convicto, sim, de que algumas instituições claramente foram utilizadas e com ciência dos seus gestores”, diz. Ele defende limitar depósitos em espécie em contas-bolsão de fintechs (já reguladas pelo BC, exceto as com movimentação financeira muito reduzida, e a partir de agora também obrigadas a reportar as transações à Receita).
Com as informações obtidas na operação, duas frentes de investigação são a importação de nafta e o uso de criptoativos na lavagem de dinheiro.
Como o crime organizado conseguiu usar estruturas financeiras por tanto tempo, fazendo movimentações bilionárias, sem ser incomodado?
A grande novidade aqui não é tanto isso da utilização de fundos para redução de tributo, ou até para ocultar alguma movimentação. Foi a utilização desses instrumentos pelo crime organizado para ocultar, movimentar e lavar dinheiro do crime organizado.
Como o senhor viu a declaração do presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, de que a Faria Lima e algumas fintechs são vítimas do crime organizado? O senhor acredita que parcela dessas instituições é conivente com o crime organizado?
A gente não pode generalizar. Essa operação atingiu algumas entidades do setor financeiro. Não dá para dizer que o setor financeiro presta-se ao crime. Na estrutura que foi montada, movimentou-se, lavou-se o dinheiro para reinjetá-lo no mercado formal. Isso não quer dizer que as empresas que tiveram esses recursos do crime organizado estivessem cientes disso.
A investigação mostrou que alguma empresa do setor financeiro ajudou o crime organizado?
Estou convicto, sim, de que algumas instituições claramente foram utilizadas e com ciência dos seus gestores. Mas a gente toma esse cuidado. Quem vai dizer se houve cometimento de crime ou não é o juiz criminal.
Mas eu posso dizer que, para a Receita, para a nossa equipe, sim houve envolvimento de instituições do mercado financeiro conscientemente nessa lavagem de dinheiro. Conforme as fintechs foram ocupando espaço maior nesse setor de movimentação financeira, o vácuo de informação também foi aumentando. O crime organizado naturalmente verificou isso. Olha, se eu preciso movimentar valores, vou movimentar por uma instituição que tem dever de transparência ou uma que entende que não tem esse dever de transparência?
Depois da megaoperação, a Receita editou norma para tentar cercar esse setor e obter mais informações dessas transações. Como isso ajudará em eventuais desdobramentos da investigação?
Na Operação Carbono Oculto, nós tínhamos duas fintechs, principalmente, que movimentaram a maior parte desses valores. E para fiscalizar as duas, nós demoramos meses. Houve, portanto, uma investigação praticamente artesanal nessas duas entidades.
Com a e-financeira [conjunto de informações sobre movimentações financeiras que todas as fintechs agora têm que fornecer], nós receberemos [informações] de 100% das instituições de pagamento. Em vez de eu estimar uma por uma, eu pego toda essa informação automatizada e coloco na minha gestão de risco.
O número de fundos de investimento envolvidos é grande, cerca de 40. Quais instrumentos a Receita tem para apertar a fiscalização desse setor?
Muitos desses fundos e os gestores deles, a rigor, não apresentavam a e-financeira. Eles deveriam apresentar. Isso é um primeiro indicativo. Nós vamos reforçar a estrutura de análise do setor financeiro. A equipe contra fraudes estruturadas, em São Paulo, vai virar uma delegacia muito mais equipada. Esse é um primeiro avanço no sentido de analisar mais a fundo esse setor. Outros vão ser feitos administrativamente. Em relação aos fundos, sempre tivemos uma atuação muito firme, mas sempre naquele perfil não de crime organizado, mas de planejamento tributário agressivo para ocultar o real destinatário.
O que pode ser feito?
Esses fundos todos têm que indicar quem é a pessoa física no final da cadeia. Isso já existe no Brasil. Estamos aprimorando isso, tornando [o processo] mais automatizado. O gestor do fundo tem um cliente, e vai [ter] informar para a Receita o cliente real, não o fundo. Não o terceiro fundo, o quarto fundo. Ele terá que indicar o CPF que está no final da cadeia, inclusive se ele estiver no exterior, que é uma outra forma também de ocultar.
Essa identificação do beneficiário final é muito importante para se combater não só a questão do crime organizado, evidentemente, de lavar dinheiro, mas também aquele planejamento agressivo para se evadir de tributo. Nós vamos torná-la mais automatizada, com um sistema inteligente. Então, por exemplo, se é beneficiário brasileiro, eu só preciso do CPF dele.
Não preciso mais preenchimento de todos os dados. O nosso banco de dados é bom o suficiente para a gente enriquecer essas informações. O número de camadas também está sendo detalhado para que não haja desvios. Eu já fui até a terceira, a quarta camada [do fundo]. Eu preciso saber quem é o CPF no final. Hoje em dia é muito fácil a pessoa abrir uma série de camadas de fundo, como nós vimos nas operações, para ir ocultando o destinatário.
As contas-bolsão continuam sendo utilizadas por algumas fintechs, o que dificulta rastrear o real destinatário do dinheiro. Como vocês vão atacar esse problema?
Eu sei que isso está no radar do BC e eles vão ter que verificar o que fazer. Na minha opinião, não faz sentido uma conta-bolsão receber centenas de milhões de reais em espécie. Eu até entendo que alguém queira depositar R$ 5.000, R$ 6.000. São centenas de milhões de reais. Me parece que não é razoável esse tipo de coisa. Então nós demos a nossa opinião para as autoridades competentes, o BC e CVM, para ver qual que é a melhor solução. Não me parece, nos meus conhecimentos do mercado e das fintechs, que seja necessário que se permita depósito nesse vulto.
O correto seria limitar aí o valor para receber em espécie? Se não limitar, aumentar o controle regulatório, não só por parte da Receita Federal.
O sr. disse no Congresso que o Coaf (órgão do BC responsável por identificar casos suspeitos de lavagem de dinheiro) não dá conta de rastrear a movimentação de dinheiro sujo via fintechs. Por que e o que precisa mudar nesse sentido?
Não são palavras originariamente minhas. Esse diagnóstico é do doutor Ricardo Saadi [presidente do Coaf], de que o volume de movimentação das fintechs aumentou tanto que eles não estão dando conta. Não tem como tratar milhões de documentos artesanalmente. Ele está investindo num sistema de TI, de inteligência, para fazer o cruzamento de dados e fazer uma gestão de risco.
Tudo indica que o arcabouço de fiscalização financeira no Brasil não deu conta da expansão desse tipo de mercado…
Tomo cuidado de dizer que não deu conta, porque a gente atacou num momento adequado. Mas a gente tem que aguardar o momento certo de avançar. Em uma operação desse tamanho, a gente colheu muita informação. Tem muitos próximos possíveis alvos. Não vou divulgar, mas quem se aproveitou desse esquema em outros setores, na movimentação, na importação [Nafta], ele sabe que a gente está de olho agora. Temos que agir muito rapidamente.
A articulação é muito importante e eu acho que a gente está avançando nisso. Por exemplo, em relação a cripto. Nós temos um grupo de trabalho com a CVM e o BC. Nos colocamos à disposição para fazer uma parceria com compartilhamento de dados, observadas as limitações de sigilo fiscal.
Vocês identificaram alguma mudança de padrão, de comportamento, a partir da operação?
Já, inclusive pelos jornais, mas eu não vou dizer quais. Mas teve já movimentação aí que mostra esse tipo de preocupação, assim. Teve.
Que caminhos as investigações podem seguir agora, com essas novas informações que vocês vão ter e a partir do que a operação descobriu?
Não me parece que todo esse recurso [movimentado] veio de combustível. Pode ser uma lavagem de dinheiro que envolve outras coisas. Eu tenho praticamente certeza porque teve outras frentes nessa operação aí que a gente foi modelando para chegar nesse foco.
A gente tá falando basicamente de tráfico de drogas?
Eu preferiria não dizer, até porque não é minha competência dizer isso. O que a Receita detecta são movimentações sem origem.
O sr. se surpreendeu, como secretário da Receita, com a presença de grandes empresas no mercado financeiro, como a Reag, que foi alvo de busca e apreensão na operação?
Eu não vou falar de empresas especificamente. Mas posso dizer que, até por conversar com o pessoal da equipe de fraude, nós sabíamos que poderia ter essa inserção, mas surpreendeu o tamanho. Eu imaginava, antes de ter os dados concretos, que seria algo mais pulverizado
Alguns parlamentares dizem que o projeto do governo de corte linear de 10% nas isenções fiscais chegou muito pesado ao Congresso e pode ser desidratado. Qual é a perspectiva?
Olha, eu não vejo isso, sinceramente, como um projeto do governo não. Isso é um pacto do Executivo com o Legislativo.
RAIO-X | Robinson Barreirinhas, 50 Secretário da Receita Federal desde janeiro de 2023. Foi secretário de Negócios Jurídicos da prefeitura de São Paulo, procurador-geral do município e chefe da Procuradoria da Fazenda junto ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Graduado em direito e especialista em direito tributário.
Fonte: Folha de São Paulo