Corte de benefícios fiscais, alternativa ao IOF, esbarra em restrições legais e lobbies no Congresso
BRASÍLIA – Economistas e tributaristas veem com ceticismo a promessa de parlamentares e de integrantes da equipe econômica de cortar ou reduzir incentivos tributários, que deverão consumir cerca de R$ 544 bilhões em renúncias de impostos neste ano, segundo dados da Receita Federal. A medida é uma das alternativas levantadas para reverter o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), que desagradou ao setor privado. A lista de iniciativas ainda está em debate e só deverá ser fechada na próxima semana.
Na última terça-feira, 3, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e os presidentes da Câmara e do Senado se encontraram para discutir propostas de compensação, mas adiaram o anúncio até que elas sejam apresentadas a lideranças do Congresso.
O argumento central do debate sobre as isenções, que vem sendo liderado pela equipe do ministro Haddad, é que esses benefícios cresceram de forma acelerada nos últimos anos e hoje representam, segundo projeção extraoficial do ministro, cerca de R$ 800 bilhões.
O número, ainda não detalhado pela pasta, usa como referência as declarações de renúncia de impostos feitas pelas próprias empresas em 2024 e que demonstram que as isenções em alguns programas superaram as expectativas.
No Congresso, deputados e senadores mencionam como resposta um “corte linear” nesses benefícios, como forma de evitar uma queda de braço com um setor específico. Todos os segmentos, na mesma medida, sofreriam uma redução − o que é alvo de dúvidas de especialistas em contas públicas ouvidos pelo Estadão (leia mais abaixo).
Vejo a redução linear dos gastos tributários − ou seja, os benefícios fiscais −, como a primeira opção do governo”, afirma o senador Efraim Filho (PB), líder do União Brasil no Senado, que também considera positiva a eventual ampliação da tributação sobre os sites de apostas esportivas (bets).
O assunto esteve na pauta da última reunião do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), com líderes partidários, na semana passada. O deputado provocou os parlamentares a buscar uma solução sobre como fazer essa revisão dos incentivos e propôs a criação de um grupo de deputados para tratar do tema.
A crise do IOF escancarou que precisamos olhar com mais atenção as isenções, que podem chegar a R$ 800 bilhões”, diz Cláudio Cajado (PP-BA).
Para ele, um corte de 6% a 7% nessas renúncias poderia gerar a receita necessária para o governo fechar as contas e ainda conceder o benefício do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil, como deseja o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Os setores que vierem chiar, vamos ver se tem motivo”, afirma.
O deputado Mauro Benevides (PDT-CE) foi autor de uma proposta, feita no fim do ano passado, de reduzir em 10% de todos os incentivos até 2031, mas ela não avançou. Ele reconhece a resistência de alguns grupos que têm votos e relevância no Congresso a discussões sobre o assunto, mas diz que é há margem para uma revisão.
“Se tirarmos os cerca de R$ 120 bilhões do Simples, os R$ 30 bilhões da Zona Franca de Manaus e os R$ 90 bilhões do agronegócio, nós ainda temos R$ 550 bilhões para manusear”, disse.
O assunto não é consenso e deputados da oposição afirmam, sob reserva, que é delicado alterar benefícios concedidos a empresas perto das eleições. O temor é que isso acabe afetando a disposição desses empresários em contribuir para as suas campanhas.
Barreiras técnicas e jurídicas
O economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, afirma que existem em torno de 100 programas de benefícios tributários, de acordo com demonstrativo de gastos tributários da Receita Federal. Ele enxerga dificuldades na proposta de cortes lineares das isenções (o mesmo porcentual para todos), por conta de barreiras técnicas e jurídicas.
“Em vez de ser despesa direta, a isenção tributária abre mão de uma receita para incentivar determinado setor ou região. A gente tem de pensar sob esse viés. Assim como não dá para cortar 10% de toda a despesa do Orçamento, também não dá para cortar 10% de todos os incentivos tributários”, disse.
Ele explica que o maior benefício tributário é concedido ao Simples Nacional, que permite que empresas que têm faturamento anual de até R$ 4,8 milhões paguem menos impostos. Com isso, o governo deixa de arrecadar R$ 120 bilhões por ano.
Quando fala que vai cortar 10% da isenção tributária (ou qualquer outro percentual), significa tirar 10% das empresas do Simples. Como vai excluir? Qualquer critério vai ser arbitrário e passível de contestação. Há barreiras técnicas e jurídicas para isso”, afirma. “Da mesma forma, Zona Franca de Manaus, ou a desoneração da cesta básica. Poderia até reonerar algum item, mas não todos itens”, conclui.
Ele entende que o único caminho é fazer uma abordagem “micro”, com análise programa a programa. “Cada programa tem a sua peculiaridade. É preciso olhar cada um deles, entender os seus objetivos e medir resultados. Assim, é possível estabelecer critérios e justificativas para as reduções”, defende.
Em um levantamento preliminar, ele entende que há dificuldades para esse tipo de corte em pelo menos 18 programas − incluindo Simples, despesas médicas, aposentadoria por moléstia grave e Zona Franca de Manaus −, o que poderia blindar mais de 60% do total das isenções.
Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, entende que por meio de uma emenda constitucional a equipe econômica poderia promover os cortes. Ele lembra que a chamada PEC Emergencial, que autorizou gastos para combater a pandemia de covid-19, em 2021, também estabeleceu um cronograma para a redução das isenções para o patamar máximo de 2% do PIB em oito anos − hoje, o patamar é de quase 5% do PIB.
Em até seis meses depois da promulgação da emenda, o governo precisava mandar um plano de revisão. Isso foi feito, mas engavetado pelo Congresso Nacional. Muitas isenções, no entanto, ficaram blindadas no texto, como Simples Nacional, Zona Franca, entidades filantrópicas; por isso, a referência já perdeu sentido”, afirmou.
Ele pontua, no entanto, que uma iniciativa semelhante poderia servir de caminho para o ajuste atual. “Haddad poderia mudar esse artigo da Constituição ou então não se basear nele e ir direto para os projetos de lei revisando os benefícios que forem selecionados à tesourada”, diz.
O advogado Luiz Bichara alerta, porém, que há travas legais à revisão de alguns desses incentivos, como os concedidos a empresas da Zona Franca de Manaus e às que usufruem de programas de desenvolvimento regional.
“O artigo 178 do Código Tributário Nacional estabelece que as isenções concedidas por prazo certo e sob condições onerosas (com contrapartida) não podem ser revogadas, nem modificadas”, afirma.
A razão de ser da regra é bastante simples: o Estado não pode acenar com a concessão de benefícios fiscais para induzir o particular a investir e instalar suas atividades produtivas em determinada região e, ainda no curso do prazo de validade desse estímulo, mudar de ideia e revogá-lo. É uma das manifestações mais elementares de segurança jurídica.”
São exemplos de benefícios tributários com essa caraterística, além dos mencionados, o REIDI (Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infra-Estrutura), para incentivar a compra de máquinas e equipamentos pela indústria, e o Mover, para o setor automotivo. Em ambos, as empresas são habilitadas pela Receita e podem usufruir o benefício por cinco anos, o que corresponde a uma contrapartida.
A Receita projetou que os dois programas consumissem cerca de R$ 4,8 bilhões neste ano, mas só o Reidi, em 2024, custou sozinho R$ 5,8 bilhões.
Bichara observa ainda que, nos demais casos, há jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecendo que alterações nesses benefícios devem obedecer aos princípios de anterioridade (ano anterior) e noventena. Isso significa que não haveria como levantar recursos ainda neste ano por meio desta revisão e que, para valer em 2026, seria necessário concluir a análise e corte até dezembro. Como já decidido reiteradas vezes pelo STF, a redução de benefícios fiscais equivale à majoração dos tributos, impondo-se a aplicação das mesmas garantias estabelecidas na Constituição para essas hipóteses”, diz Bichara.
Fonte: Estadão