STF patrocina ‘jogo do resgate’ e premia estados e municípios que gastam mais, dizem especialistas

Para pesquisadores, Corte incentiva irresponsabilidade de gestores, e decisões que cobram medidas de ajuste deveriam ser exemplo

Idiana Tomazelli

Brasília

O histórico de decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) a favor de estados e municípios em ações sobre temas financeiros incentiva a postura irresponsável de governadores e prefeitos na gestão das contas, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Em diferentes momentos, a Corte lançou uma boia de salvação para entes que haviam acelerado despesas durante a fase de bonança, mas ficaram sem recursos para honrar os compromissos quando as receitas encolheram. O prejuízo foi parar no colo da União.

Agora, com a recente expansão de gastos patrocinada pelo maior volume de transferências, inclusive via emendas parlamentares, o temor é que o ciclo se repita.

O problema é o jogo do resgate, um aumento consistente de gastos públicos a nível subnacional com recorrentes socorros financeiros da União. E aí entra o STF com um péssimo incentivo”, diz a pesquisadora Débora Costa Ferreira, que estuda os incentivos eleitorais a partir das regras fiscais brasileiras.

Segundo ela, a situação atual favorece a estratégia de reeleição dos gestores locais, que consiste em atrair emendas, maximizar transferências e ampliar despesas.

“Quando a situação fiscal piora, porque esse dinheiro some depois da reeleição, o STF vai lá e legitima a estratégia, porque a via do resgate está sempre disponível. Tem que fechar a torneira”, diz.

Nos últimos anos, diferentes ministros decidiram impedir bloqueios de valores para cobrir calotes em dívidas, assegurar o ingresso de estados no RRF (Regime de Recuperação Fiscal) e afastar punições previstas em lei para aqueles que, mesmo sob o compromisso de ajustar as contas, seguiram gastando acima dos limites. O argumento principal é que estados não podem emitir dívida própria e precisam manter o funcionamento das políticas.

O STF foi procurado por meio de sua assessoria, mas não se manifestou.

Em sua tese de doutorado, de 2019, a pesquisadora Andrea Dantas retratou em números o quanto o pêndulo da Corte estava mais inclinado aos entes subnacionais. De 250 ações sobre temas fiscais movidas por estados e que já haviam sido julgadas, 218 tiveram resultado favorável a eles —índice de 87,2%. A análise precedeu o auge das ações sobre o RRF, que apenas reforçaram essa tendência.

“Há uma ideia um pouco arcaica do federalismo brasileiro, de que a União é a grande provedora e tem que fazer esse equilíbrio. É como se o grau de responsabilidade fiscal da União fosse um, e o do estado fosse bem menor”, critica.

Para ela, o STF teve papel determinante no aumento das dívidas de Rio de Janeiro e Minas Gerais. Agora, eles são alguns dos principais interessados no socorro aprovado pelo Congresso Nacional e que, mais uma vez, joga a fatura no colo do governo federal, via redução de juros.

“O Supremo dá uma liminar e a mantém durante nove anos, dizendo que um estado não precisa pagar nenhuma dívida, sem nenhuma consequência ou sanção. Enquanto isso, o mesmo estado está dando aumento para servidores, usando o dinheiro de forma errada. O STF não pode lavar as mãos”, afirma Dantas.

Segundo a pesquisadora, a própria Corte tem exemplos positivos a serem seguidos. Ela cita uma decisão do ministro Gilmar Mendes que, em 2019, concedeu a Goiás os benefícios do RRF, mas exigiu também as medidas de ajuste previstas na lei e uma prestação de contas a cada seis meses.

“Foi um gatilho de comportamento fisicamente responsável, que gerou um ciclo virtuoso para Goiás. Em contraposição, Rio e Minas só têm decisões favoráveis. Não pagam a dívida e vão se afundando”, diz Dantas, que pretende, no pós-doutorado, medir quanto do aumento da dívida desses dois estados decorreu das decisões do STF.

O ministro Gilmar Mendes diz à Folha que Goiás recorreu ao Supremo já tendo um cardápio de medidas de ajuste que pretendia implementar. A dificuldade era ingressar no socorro, já que a situação fiscal, embora ruim, não preenchia os critérios.

“Ainda que uma recuperação fiscal [seja] dada por decisão judicial, ela teria que seguir os parâmetros da lei. E foi isso que nós impusemos na liminar. E certamente isso pode ser diferente de outras decisões”, afirma o ministro.

Embora reconheça que o STF às vezes toma “medidas excepcionais” diante de um contexto mais amplo (como o risco de atraso de salários provocar uma crise de segurança, por exemplo), Gilmar diz não ver favorecimento a estados e municípios. “O tribunal busca um equilíbrio”, diz.

Ele defende que as decisões da Corte sigam a lei, inclusive na cobrança das medidas de ajuste, mas evita comentar os demais casos. “Não vou emitir juízo sobre processos que estão sob a relatoria de outros colegas. Mas é importante que as situações sejam, tanto quanto possível, tratadas de maneira semelhante”, diz.

O professor Maurício Bugarin, da Universidade de Brasília, destaca que a adoção de medidas de ajuste fiscal tem custo político e social. Por isso, quando o STF decide a favor de estados e municípios e poupa os gestores do desgaste, isso vira um incentivo perverso até mesmo para aqueles que estão com as contas em dia.

“Um governador olha e vê duas opções: aperta o cinto e gera impopularidade, ou vai no Supremo e diz ‘se eu pagar isso, vou ter que cortar a merenda das crianças’. Aí o STF dá uma liminar. E ele [gestor] consegue se reeleger, ou eleger seu grupo e sair bem para outro cargo. Quando decidir [em definitivo], já é outro governador”, afirma.

Hoje, as despesas de estados e municípios já ultrapassam até mesmo o gasto direto da União, o que interfere na economia e na tarefa do Banco Central de controlar a inflação.

O professor da UnB traça um paralelo com os anos 1990, quando se via necessidade de tratar do problema dos bancos estaduais (que financiavam os déficits dos estados) para controlar a inflação.

A questão foi abordada em um artigo escrito em 1992 pelos economistas Sérgio Werlang e Armínio Fraga. Sete anos depois, eles eram diretor de Política Econômica e presidente do Banco Central, respectivamente, e implementaram o sistema de metas para inflação.

O argumento central era que o gestor do estado, ao conseguir transferir a responsabilidade para a União, gerava bem-estar para seu eleitorado pagando apenas um pedaço da fatura, que era dividida entre todos os brasileiros.

“Isso é um jogo não cooperativo em que a solução não é eficiente: é todo mundo jogando despesas para a União, e um gasto agregado maior do que se não tivesse a divisão”, diz Werlang.

O problema dos bancos estaduais foi endereçado no fim dos anos 1990, mediante privatizações, mas outras figuras passaram a operar essa mesma engrenagem, entre elas o STF. “Talvez o ministro do Supremo não tenha se dado conta de que, ao perdoar o estado que está enforcado, na verdade ele está enforcando todo mundo”, alerta o economista. Para ele, o quadro é fruto também da “falta de empenho” do Tesouro Nacional em mostrar os efeitos negativos das decisões. Procurado, o órgão afirma que as decisões judiciais são respeitadas, mas não cabe ao Tesouro se manifestar em relação ao mérito ou aos efeitos estruturais decorrentes delas.


Fonte: Folha de São Paulo

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