Gasto tributário no Brasil é uma ‘aberração’, diz Padovani, do banco BV

Para o economista, governo precisa enfrentar agenda do gasto para reduzir a concentração de renda

O economista-chefe do Banco Votorantim, Roberto Padovani, avalia que um dos focos da política fiscal deveria ser a redução dos chamados “gastos tributários”, renúncias fiscais que na leitura dele têm pouca eficácia e concentram renda. “O que a olhos vistos é uma aberração? Essa história do gasto tributário”, afirmou Padovani em entrevista ao JOTA.

Ele considera que, além dos benefícios tributários, o gasto público no país é altamente concentrador de renda e sua redução deveria entrar para valer na agenda do governo, ainda que reconheça as dificuldades políticas para isso avançar. “O gasto público no Brasil concentra renda. Você aumenta gastos para dar subsídios para empresários e crédito para grandes empresas, alguns programas sociais são mal focalizados, há distribuição de renda para classe média”, disse.

O economista diz que há uma preferência clara do presidente Lula por gasto público, o que acaba por estimular que o congresso e outros agentes, como servidores públicos, entes federativos, também demandem mais gastos. Isso leva ao que ele chama de “uma coalizão pró-gasto no Brasil”. A consequência, explica, é que o teto de gastos do novo arcabouço deve durar três ou quatro anos. “Eu não vejo essa regra fiscal tendo fôlego para permanecer com muitos mandatos presidenciais”, defendeu.

Padovani  considerou que o corte de R$ 15 bilhões de gastos para 2024 anunciado pelo governo recentemente foi um sinal positivo de maior comprometimento com as regras fiscais e em equilibrar as contas públicas. “O esforço do governo é correto nesse momento para sinalizar que “estamos empenhados e vamos fazer o melhor possível”. Isso ajuda a segurar o preço dos ativos e manter a economia relativamente bem e comportada”, disse. O valor, contudo, está bem abaixo dos R$ 50 bilhões que sua equipe calcula como necessário para alcançar a meta de primário e ficar dentro do teto de gastos.

Na entrevista, que faz parte de uma série do JOTA sobre a conjuntura econômica e os cenários para o país, o economista também abordou a sucessão no Banco Central, o cenário de manutenção da taxa de juros para o curto prazo e apontou que o crescimento econômico não deve ficar muito superior a 2% nesse e no próximo ano, embora reconheça que os modelos macroeconômicos ainda estejam errando muito. Confira os principais trechos:

Corte de R$ 15 bilhões em 2024

Tem uma leitura positiva e uma negativa. A positiva é que o governo está empenhado em entregar um contingenciamento/bloqueio. O discurso da equipe econômica é de comprometimento com a regra fiscal. [Lembrando que] Havia uma previsão no começo do ano de que agora em julho ou agosto já estaríamos abandonando as regras fiscais.

O lado negativo é que tanto o bloqueio como o contingenciamento feitos parecem insuficientes. As projeções dos economistas têm mostrado uma dispersão muito grande, e isso é devido ao comportamento das receitas. Olhando a questão do [resultado] primário e a questão do teto de gastos, nós consideramos que seria necessário um contingenciamento entre R$ 50 e 60 bilhões.

Um primeiro desafio grande para 2024 é confirmar as receitas que o governo está sinalizando. Em segundo, entender se iremos conseguir reduzir o ritmo de crescimento das despesas. Elas estão elevadas porque alguns grupos como saúde e educação estão sendo reajustados pela receita, ou seja, não estão obedecendo a regra do arcabouço, além da indexação de programas sociais e Previdência. Portanto, apesar do sinal positivo do governo estar empenhado em equilibrar as contas públicas, você tem um desafio muito grande e é por isso que o impacto [da contenção] no preço dos ativos foi moderado. Está todo mundo olhando mais para frente do que para o anúncio especificamente.

Meta fiscal

Em uma resposta fria, mirar o limite inferior da meta de resultado primário é negativo, porque você teria que, neste momento, fazer um esforço fiscal maior para tentar equilibrar a dívida. Mas temos que lembrar que o contexto importa. Nesse momento há um déficit de credibilidade, discussões ideológicas, eleições apertadas, e tudo isso estimula o gasto. Então, nesse contexto, acho que está tudo bem alcançar o limite inferior da meta. No final, o que vai valer não é se você chegou no centro ou no limite inferior, é se o governo está caminhando na direção correta. O que seria ruim é uma percepção de que o governo não teria compromisso de alcançar resultados primários e, portanto, de estabilizar a dívida.

Teto de gastos e arcabouço fiscal

Temos uma tarefa gigantesca como sociedade que é enfrentar a estrutura de gastos do Estado. O governo Temer foi o primeiro a fazer isso com o teto de gastos. Para nós, economistas,  o teto foi uma ideia maravilhosa pois imaginamos que, quando as despesas batessem no seu limite, o sistema político iria reagir e fazer escolhas. Mas não foi isso que aconteceu. Durante seus seis anos de duração, o que vimos o tempo todo  foi o esforço político dedicado para driblar a regra.

Com o arcabouço, temos de novo um teto de gastos, porém mais flexível, o que eu acho mais inteligente. Mas ele não vai parar em pé, assim como não parou o teto, se nós não fizermos uma revisão nas regras da indexação das despesas ou mudança na estrutura de gastos do Estado. Uma reforma administrativa, um ajuste na reforma previdenciária na questão dos militares, por exemplo.

O que nós economistas gostaríamos é que o teto de gastos da forma atual fosse um incentivo para que o governo fizesse ajustes. Porém, nesse momento, isso vai ser muito difícil. Primeiro porque tem uma preferência por gasto público. O presidente tem deixado isso claro quando diferencia gasto e investimento, no fundo ele está fazendo uma defesa pelo gasto. Quando o líder máximo de um país defende uma agenda, as pessoas acreditam nela. Então provavelmente você vai estimular que o congresso e outros agentes, servidores públicos, entes federativos, também demandam mais gastos. O que você está fazendo na verdade é construindo uma coalizão pró-gasto no Brasil, por razões ideológicas e por razões de cálculo político.

O que aprendemos em ciência política é que você tem o seguinte ciclo político nas principais democracias: quando se ganha eleição, você arruma a casa e então sobram recursos para gastar na segunda parte do mandato, de olho na próxima eleição. Aqui invertemos essa lógica (corretamente, na minha visão) por razões peculiares de um momento de polarização, então o governo já aumentou gastos logo que foi eleito. Então você tem uma preferência por gasto, em um momento eleitoral difícil, com eleições disputadas.

Sobre a durabilidade do arcabouço, acho que ele não acaba rápido, mas não vejo tendo fôlego para permanecer com muitos mandatos presidenciais. Vai durar três ou quatro anos.  Digo isso porque a estratégia do governo é postergar qualquer decisão radical. Se você muda as regras fiscais neste momento, você gera uma desancoragem dos ativos financeiros, principalmente câmbio e juros, e isso impacta o crescimento, emprego  e questões de consumo. A popularidade do governo cairia em um momento de preparação para uma eleição presidencial. Por isso, acho que a estratégia mais adequada nesse momento é empurrar com a barriga. É fazer todo o esforço possível, dadas as exceções políticas, para você manter a regra.

Revisão de gastos e benefícios tributários

A questão da mudança constitucional da saúde e educação é mais complicada. Mas eventualmente você indexar alguns programas sociais pela inflação e não pelo salário mínimo eu acho que faz sentido. Mas isso não resolve a história, o que poderia resolver é que nos últimos 20 anos, nós acumulamos gastos tributários gigantescos. O ministro Fernando Haddad tem falado isso com frequência e ele tem toda razão no sentido de que há espaço para rever políticas públicas e portanto diria que trazer alguma racionalidade na concessão de benefícios e subsídios.

Zona Franca de Manaus, cesta básica, Simples, essas coisas não vão ser alteradas. Mas teria alguma coisa para ser feita se o Executivo comprasse a tese de que precisamos focalizar mais o uso do dinheiro público. Porém, como falei, é simples falar “é só cortar o gasto tributário” sem considerar a parte política. Sempre se acha que tem uma conta esquecida e quando você mexe nela, aparece o dono.

O discurso para defender essa tese está pronto: o gasto público no Brasil concentra renda. Você aumenta gastos [fiscais] para dar subsídios para empresários e crédito para grandes empresas, alguns programas sociais são mal focalizados, há distribuição de renda para classe média.

Quando você tem uma expansão fiscal desordenada, isso tudo acaba pressionando a dívida, pressiona os juros. E quem ganha com juros elevados no Brasil? Rentistas, quem tem dinheiro. A melhor política de transferência de renda hoje no Brasil, um país desigual, é focalizar em quem precisa e com isso sobrar recursos para fazer uma oferta de bens públicos de boa qualidade.

Um exemplo prático dessa dificuldade é a [desoneração da] folha de pagamentos. O que estamos fazendo é escolher uma parcela de alta renda da sociedade para receber transferência de recursos públicos. Em país desigual como o nosso uma política dessas faz sentido? Não. O problema é que o governo vai ter que enfrentar o lobby, que é alto no congresso. Nesse caso, ele enfrentou e perdeu. O que a olhos vistos é uma aberração? Essa história do gasto tributário.

Rumos da política monetária

Tenho colegas de mercado dizendo que você tem que subir a taxa de juros – eu não estou nesse time. Quando eu faço nossas contas, os 10,5% me parecem adequados. Acho que é o que vai acontecer e é o que deveria acontecer.

De novo, tem a fronteira entre economia e política. Eu estou aqui rodando meus modelos, fazendo as contas, acho que a taxa está equilibrada. Agora se coloque na cadeira do presidente do Banco Central. Você terá que tomar uma decisão em um contexto político complicado, em que repetidamente o governo vem criticando a autoridade monetária desde o início do mandato. Então nesse momento, pré eleitoral, você vai subir taxa de juros? Não faz sentido.

Essa é uma política monetária apertada, mas que faz sentido porque teremos uma mudança no comando do BC em dezembro. Vamos supor que esse BC não fizesse cálculo político e colocasse a taxa em 12%. O mercado não iria melhorar porque ele saberia que o próximo presidente do BC reduziria essa taxa.  Temos um “dia D” que é a mudança de comando do BC e isso está fazendo diferença. Isso se conecta com a política econômica, pois esse governo vem defendendo a expansão fiscal, criticando a autonomia do BC, meta de inflação e taxa de juros.

Nós temos um passado complicado, em especial na gestão de 2006 até 2014…Todo mundo faz a conta de que o próximo BC vai ser mais leniente e aceitar uma inflação mais alta. Então não interessa o que o BC faça agora, ele não vai reancorar as expectativas. Ao manter as taxas de juros elevadas, ele está ajudando o próximo presidente do BC, que terá que fazer uma outra parte da tarefa que não é subir juros, mas sim reafirmar seu compromisso com o centro da meta.

Ajudaria muito se o governo tivesse um discurso político de maior comprometimento com a meta fiscal também…O próximo presidente do BC vai fazer um esforço para construir reputação, então não vai sair cortando imediatamente a taxa de juros, mas há espaço no próximo mandato [do presidente do BC] para a Selic cair a 9,5%.

Sucessão no Banco Central

Os indicados até o momento são nomes respeitados no mercado, não dá para dizer que tivemos indicações ruins. [O diretor de política monetária Gabriel] Galípolo tem um discurso arrumado, alinhado com o que o mercado pensa, veio do setor privado financeiro. Paulo Pichetti é uma referência. Então não dá pra dizer que teremos um cavalo de pau na política monetária. A gente tende a olhar o nome, a instituição, mas o que ajudaria muito o próximo presidente do BC, seja quem for, é uma política fiscal um pouco mais arrumada. Isso faz toda diferença para reancorar as expectativas. Se  deixarmos esse próximo presidente brigando sozinho com expansão fiscal, dívida em alta, dificilmente o BC terá instrumentos para controlar as expectativas de inflação.

Avaliação do governo e do programa econômico

A gente tem essa história de separar o ciclo econômico por mandatos presidenciais, mas a coisa não funciona assim. O que temos visto no Brasil hoje é que as reformas que foram feitas entre 2016 e 2021, incluindo a reforma tributária agora, foram reformas absolutamente importantes. Reformas são difíceis de serem feitas em qualquer país. É uma coisa espetacular o que aconteceu com o Brasil.

Esse governo entregou reforma tributária. Se você me perguntasse no fim de 2022 se ela sairia, minha resposta seria não. Todo esse esforço dos últimos anos está sendo revertido em um desempenho econômico melhor. O PIB potencial que era 1% ou 1,5%, agora discutimos se é 2% ou 2,5%.

O desempenho do setor exportador também é surpreendente. O agronegócio é sempre um destaque de produtividade e o setor que mais avançou. Mineração também vai bem. E uma outra novidade que começou no governo Lula é o pré-Sal. Estamos nos transformando em um produtor global relevante. Se você olhar 2023 em que o PIB cresceu 2,9%, 40% desse crescimento foi petróleo (Petrobras), Vale e o agronegócio. Isso dá uma potência para o país. Além disso, temos um fenômeno global que é o mercado de trabalho robusto. Então, quando juntamos essas três informações: reformas, setor exportador e mercado de trabalho aquecido, o país vai bem. Um reflexo desse bom desempenho foram as avaliações das agências de rating.

O temor que existe hoje,  que eu acho que é o menos provável, é que haja retrocessos.  Talvez o principal seria você abandonar regras fiscais. Eu não acho que vamos ter esse movimento, mas eu acho que o nosso grande desafio no país é entendermos que precisamos trazer racionalidade na despesa pública. Por isso que o teto não funcionou e por isso que o arcabouço também não vai funcionar.

Agora que fizemos todas as reformas importantes, temos que nos concentrar na discussão da estrutura do Estado. De maneira geral é um governo que está indo bem melhor do que eu imaginei, não só pelas ações do próximo governo, mas das escolhas que o país tem feito. A nota negativa que eu daria é o fato dele não coordenar a sociedade para estabilizar dívida. Ele [o governo] não tem gerado um consenso nacional em torno do debate da despesa pública. Pelo contrário, tem estimulado uma coalizão pró-gasto para o país.

Embates com mercado financeiro

É natural que qualquer presidente da república não vá falar para o mercado financeiro, ele vai falar para o seu eleitor. Nesse mês de julho o que aconteceu: o dólar foi para 5,70, e então o governo se assusta. Câmbio subindo, juros em alta, custo do crédito mais alto, portanto, crédito e consumo perdendo fôlego, investimento também, menos crescimento e menos emprego. O resultado dessa história é que se a economia enfraquece, a avaliação do governo tende a piorar.

Quando o governo percebe isso, ele modera o discurso, e foi o que aconteceu. O governo entregou os R$ 15 bilhões [de cortes], definiu meta contínua, a Petrobras subiu preço de combustível. É natural que os governos falem para suas bases e é natural que os mercados reajam e disciplinem o próprio governo. Porém, quanto mais ruído você causa, mais prêmio de risco você coloca no ativo financeiro. Esses ruídos cobram um preço – não acho que seja dramático, não é uma crise ou recessão, mas qualitativamente isso não ajuda. Mas quando monto meus cenários, isso faz diferença? Não. O que faz diferença para mim é a dívida pública.

Crescimento econômico Nossa projeção é de um PIB rodando em 2% com viés de alta em 2024 e 2025…Nunca errei tanto no PIB como nos últimos quatro anos. Errar um ano é fácil, teve um choque, agora errar três ou quatro anos significa que o seu modelo está errado. Quando vamos projetar o futuro, o que fazemos é usar modelos estatísticos. Usamos regressões que olham o histórico, o comportamento passado e isso influencia suas projeções. Só que o nosso passado foi um desastre. Tivemos uma recessão econômica em 2015 e 2016, uma retomada em 2017 difícil e o debate do primeiro ano do mandato de Bolsonaro é que o PIB nosso era de 1,5%. E então veio a pandemia. Depois de 2021 erramos [mercado de forma geral] todo o PIB. A pandemia foi inédita mas também foi inédito a quantidade de recursos colocados na economia… Foi um impulso de política econômica nunca visto. A gente não sabia fazer essa conta e erramos o PIB de 2020 e 2021 por conta disso. Eu estou seguro que foi o excesso de estímulos dados no mundo. A história de 2022 e 2023 foi retirada desses estímulos, principalmente monetários. E foi quando começamos a baixar a bola no Brasil e as reformas fizeram diferença. Se falamos que reforma importa na teoria econômica, e olharmos [o que aconteceu], nós fizemos todas. A que faltava nós fizemos agora, que era a tributária. Então não dá para dizer que isso não vai ter efeito. À medida que essas novas informações vão se transformando em dados econômicos e esses dados vão alimentando os nossos modelos, eles vão aprendendo que a história é diferente. Então eu espero que esse ano e ano que vem, eu erre menos no PIB.


Fonte: Estadão

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