Presidente do TCU sugere que novas mudanças na Previdência comecem com militares
Bruno Dantas alerta para desproporção: déficit per capita de militares é R$ 159 mil, o dos servidores civis, R$ 69 mil, enquanto o do INSS é R$ 9,4 mil
Adriana Fernandes Idiana Tomazelli
Brasília
O presidente do TCU (Tribunal de Contas da União), ministro Bruno Dantas, afirma não ter dúvida de que o Brasil precisará de novas mudanças nas regras da Previdência.
Com tabelas nas mãos, elaboradas pela auditoria do tribunal, Dantas alerta para a desproporção que existe entre os déficits das contas da Previdência dos trabalhadores. Enquanto o déficit per capita (por beneficiário) do setor privado, no INSS, é de R$ 9,4 mil e o dos servidores civis chega a R$ 69 mil, nas contas dos militares o valor é muito superior. Alcança R$ 159 mil.
“O que me cabe como auditor das contas do Brasil é mostrar esses números. É óbvio que há uma desproporção aqui e que algo precisa ser pelo menos pensado”, diz o ministro em entrevista à Folha.
Dantas afirma que a decisão por onde iniciar as mudanças é “de governo”. Mas ressalta que tais alterações talvez possam começar pela Previdência dos militares. “No governo passado, foi feita uma reforma da Previdência para o servidor civil, para o RGPS (Regime Geral de Previdência Social), e não foi feita para os militares”, justifica.
Dantas avalia que a situação das contas públicas no Brasil não é confortável, mas também não é explosiva. Ele acredita que o governo alcançará a meta de déficit zero.
“A única coisa que nós, e isso não é uma ameaça, não aceitamos é que o governo passe o ano inteiro gastando como se a meta fosse X e no final do ano mude a meta para Y, para fazer uma conta de chegar de trás para frente e justificar o gasto que foi feito”, avisa.
Como o TCU vai atuar na fiscalização dos recursos para o enfrentamento da tragédia climática no Rio Grande do Sul?
Mobilizamos uma força-tarefa com aproximadamente 60 auditores, que vai acompanhar liberações de recursos, contratações, compras, licitações. O objetivo é dar segurança para o gestor de boa-fé agir. E, claro, também estaremos atentos para evitar que casos de desvios aconteçam. Aceitei o convite do presidente Lula para ir até lá. Desde o primeiro momento, já sabíamos que em catástrofes de grandes dimensões o socorro às vítimas e o trabalho de reconstrução invariavelmente encontra no rigor da legislação e no rigor dos órgãos de controle um empecilho para um trabalho mais emergencial.
Qual é a saída?
Disse tanto ao presidente Lula quanto ao governador Eduardo Leite que na pandemia o TCU mostrou como somos capazes de agir com flexibilidade para dar segurança jurídica ao gestor que precisa fazer contratações emergenciais e, no futuro, não venha a ser responsabilizado por um erro que cometeu no afã de salvar vidas. Mas também mostramos que, ao suspender inúmeras licitações, a corte não toleraria corrupção, desvios, desmandos.
Respondemos a uma consulta do Ministério da Saúde em que dizíamos que para a compra das vacinas era possível flexibilizar todas as regras que estavam na Lei de Licitações, que estávamos diante de uma necessidade urgente. Mas por outro lado suspendemos também, por exemplo, um contrato de quase R$ 1 bilhão para a compra de aventais e outro de coturnos pelo Exército, que estavam sendo comprados emergencialmente, o que era totalmente indevido.
Houve perda de credibilidade para a política fiscal com a mudança das metas fiscais? O governo não estaria minimizando o risco fiscal num quadro de piora do cenário internacional?
O ano de 2023 foi o de waiver [licença para gastar] que o Congresso deu aprovando uma emenda constitucional excluindo R$ 168 bilhões do teto de gastos. Não é justo atribuir ao governo. Isso foi um consenso geral de que era necessário recompor aqueles programas que tinham sido prometidos na campanha eleitoral. Quando o ministro Fernando Haddad [Fazenda] se deparou com um cenário desafiador que ocorreu em 2023, e o que está se colocando agora em 2024, é absolutamente natural que ele proponha ajustes de rota. Estamos chegando no déficit zero.
O sr. acredita nessa possibilidade?
Acredito. O ministro tem sido incansável em identificar, por um lado, os pontos de necessidade de recomposição da base tributária. Isso, de certa forma, já se esgotou. E agora, eu vi uma entrevista para a Folha de Dario Durigan [secretário-executivo da Fazenda], em que ele declara, pela primeira vez, que a Fazenda também vai concentrar esforços, junto com a ministra Simone Tebet [Planejamento], para a revisão periódica de gastos públicos.
A proposta do governo na PLDO (Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias) prevê uma revisão de gastos de apenas R$ 9 bilhões. Não é pouco?
É por isso que a Fazenda quer se juntar ao Planejamento. Se eles se juntam em busca da revisão de gastos públicos, temos condições de melhorar muito. É preciso também dar transparência para as renúncias fiscais. A foto pode não ser a melhor, mas daqui a dez anos vamos estar em melhores condições.
O presidente Lula já deu demonstrações sobejas de que apoia a agenda do ministro Haddad. No ano passado, quando houve a discussão da meta [mudança de 2024], foi prestigiada a sua posição. Veja que estamos indo para o fim do segundo trimestre e não houve necessidade fazer contingenciamento.
Não há seletividade no cumprimento da responsabilidade fiscal? Além de o Congresso aprovar medidas sem compensação, o governo também vem ao TCU para pedir autorização para contingenciar menos?
O ministro Haddad optou por fazer a máquina pública funcionar por gestão. É evidente que se você tem uma regra, a do contingenciamento, que é estática, diante da dinâmica que o ministro está enxergando, fazer um contingenciamento, na visão dele, exagerado, poderia atrapalhar a dinâmica para o resto do ano. O contingenciamento é instrumento e não um fim em si mesmo. A economia é dinâmica.
Não estou fazendo uma mudança de interpretação do instrumento do contingenciamento, não estou. Não estou defendendo nada, inclusive porque aqui no tribunal, felizmente, o presidente nem vota nessas matérias.
O quadro que temos de âncora fiscal precisa ser harmonizado. E o arcabouço fiscal contempla a dinâmica da economia. Então, eu acho que não há grandes problemas neste momento. A única coisa que nós, e isso não é uma ameaça, não aceitamos é que o governo passe o ano inteiro gastando como se a meta fosse X e no final do ano mude a meta para Y, para fazer uma conta de chegar de trás para frente e justificar o gasto que foi feito. Isso não. Isso definitivamente não é responsabilidade fiscal. Mas não é isso que está acontecendo. Não fazer o contingenciamento, mas, por exemplo, atrasar a realização de uma despesa, de certa forma é um contingenciamento não declarado.
O governo está fazendo isso…
É gestão. O que Haddad decidiu foi usar a gestão administrativa, em vez de usar o contingenciamento. A gestão administrativa significa que uma despesa que teria que ser contratada em fevereiro vai ser contratada em maio, e aí ela, em vez de custar X, vai custar Y. Isso é gestão pública. Não existe só contingenciamento para gerir as finanças públicas. Existem outras ferramentas.
Acha que é melhor descumprir a meta de déficit zero deste ano e acionar os gatilhos do que mudar a meta?
Acho que é mais honesto acionar os gatilhos. O cumprimento ou descumprimento da meta são dados da realidade. O próprio arcabouço fiscal tem os gatilhos para isso.
O arcabouço fiscal fica de pé sem mexer nas despesas obrigatórias?
Temos um grupo de despesa que precisa ser olhado. Se segregamos a Previdência, o Tesouro é superavitário. O que nos empurra para o déficit é a Previdência. E aí temos três grandes blocos. A Previdência do trabalhador, que é regido pela CLT, nos aponta um déficit de R$ 315 bilhões para beneficiar 33,5 milhões de pessoas. Temos o Regime de Previdência do Serviço Público Civil, em que o déficit é de R$ 55 bilhões para 796 mil servidores civis, e o déficit dos militares de R$ 49,7 bilhões para 313 mil.
O sr. quer dizer que será necessário fazer novas mudanças na Previdência?
Não tenho a menor dúvida disso. Talvez não seja neste governo, talvez seja no próximo. Certamente nós teremos que sentar e discutir seriamente esse déficit da Previdência.
Começando com os militares?
É uma decisão de governo. No governo passado, foi feita uma reforma da Previdência para o servidor civil, para o RGPS, e não foi feita para os militares. Talvez possa ser. O que me cabe como auditor das contas do Brasil é mostrar esses números. É óbvio que há uma desproporção aqui e que algo precisa ser pelo menos pensado. É preciso que nós comecemos a discutir isso. Estamos falando de quase meio trilhão de reais de déficit.
Qual o caminho para discutir o estrangulamento fiscal?
O governo tem caminhos, sendo quatro pela despesa e só um pela receita: uma reforma administrativa que reduza substancialmente o tamanho do Estado, acenando para o futuro; a desvinculação do salário mínimo; a revisão dos mínimos constitucionais da saúde e da educação; uma reforma da Previdência que reduza o déficit de R$ 500 bilhões; e a revisão das isenções fiscais e dos benefícios tributários que somam hoje mais de R$ 600 bilhões.
O ideal é fazer um combo com um pouco de cada solução. Não defendo a desvinculação pura e simples do salário mínimo. Ela poderia entrar como parte do pacote, numa negociação mais ampla com o Congresso.
O arcabouço corre o risco de bater na parede?
A situação das finanças públicas brasileiras não é explosiva. Posso afirmar com todas as letras. Ela não é confortável. Mas não é motivo para desesperar. Eu não tenho uma visão apocalíptica. Sou otimista e acho que, em 2024, a economia brasileira vai crescer. O comportamento da economia vai ditar o que vai ser 2025. Temos uma eleição neste ano, temos outra em 2026. É óbvio que tudo isso deixa os nervos à flor da pele no Congresso, no governo. As instituições têm que ter serenidade para não apertar o botão de pânico antes da hora.
Fonte: Folha de São Paulo