Jabuti que antecipa gasto de R$ 15 bi e amplia poder de Lula teve aval da Fazenda; mercado vê drible
Acordo foi articulado pela Casa Civil, com conhecimento de Haddad, e envolve a recomposição de R$ 3,5 bilhões em emendas de comissão que foram vetadas pelo governo
BRASÍLIA – Em manobra articulada pela Casa Civil e que contou com o aval do Ministério da Fazenda, lideranças do governo na Câmara dos Deputados alteraram o recém-nascido arcabouço fiscal. O objetivo foi antecipar a abertura de um gasto extra de até R$ 15,7 bilhõesneste ano e, de quebra, ampliar o poder do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na destinação do dinheiro.
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O projeto aprovado pela Câmara autoriza o presidente Lula a definir a destinação do dinheiro por decreto e sem aprovação prévia do Congresso, imediatamente após a sanção da lei. Atualmente, o arcabouço fiscal prevê que essa abertura seria feita mais tarde e com o envio de um projeto de lei, submetido à aprovação dos parlamentares.
Ainda há divergências sobre os efeitos da proposta. Alguns técnicos e congressistas querem que o Legislativo dê a última palavra. O que houve nos bastidores foi um acordo para ratear o apadrinhamento do recurso. O Estadão apurou que a negociação passou pelo crivo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e envolve a recomposição de R$ 3,5 bilhões dos R$ 5,6 bilhões em emendas de comissão vetados por Lula.
Dois terços do valor das emendas serão destinados para indicações dos parlamentares da Câmara e um terço, para o Senado. Os cerca de R$ 12 bilhões restantes ficarão sob comando do governo, com prioridade à recomposição de gastos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que também foram alvo de bloqueios. O ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, é o coordenador do programa e foi apontado como um dos articuladores da mudança no arcabouço.
A mudança na regra fiscal foi realizada por meio de um “jabuti”, como se fala no jargão político para se referir a uma matéria estranha ao texto principal. No caso, a emenda foi inserida em um projeto de lei que cria um seguro nos moldes do antigo DPVAT, para vítimas de acidentes de trânsito. A autoria do “jabuti” foi do deputado Rubens Pereira Junior (PT-MA), um dos vice-líderes do governo na Câmara.
O texto, que agora segue para o Senado e deve enfrentar resistência por lá, altera a redação do novo marco fiscal, autorizando o governo a abrir esse crédito suplementar com base nas projeções de arrecadação do primeiro bimestre do ano, que já foi publicado em março – e não mais do segundo bimestre, que só será divulgado no fim de maio, como previa a lei original. De acordo com especialistas, a abertura do crédito suplementar depois seria mais recomendável, pois lidaria com um cenário de arrecadação mais realista.
Esse artigo do arcabouço autoriza o governo gastar até R$ 15,7 bilhões a mais em 2024 caso a projeção de receita para o ano seja mais elevada do que o inicialmente estimado. Mas isso só seria calculado em maio, observando o cumprimento da meta de déficit zero, e dependeria da tramitação de um PLN (Projeto de Lei do Congresso Nacional) – ou seja, de uma proposta orçamentária que precisaria ser analisada pela Comissão Mista de Orçamento (CMO) e, depois, pelo plenário do Congresso. Um trâmite muito mais longo e que daria maior protagonismo aos parlamentares.
“Na prática, o governo arromba o cofre ao presumir que o excesso de arrecadação se manterá até o fim do ano. Em resumo, gastam como se não houvesse amanhã. Não mediremos esforços para que o projeto não prospere”, afirma o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN).
Em ano de eleição municipal, a antecipação significa que o recurso pode ser repassado antes do período eleitoral, beneficiando prefeitos nas bases políticos dos parlamentares e do governo Lula. Em 2024, por conta da campanha, há pressão para repasses antecipados devido à legislação, que proíbe início de obras e transferências no meio da disputa eleitoral.
Economistas apontam fragilização do arcabouço fiscal
O texto também foi mal recebido pelos economistas do mercado financeiro ouvidos pelo Estadão. “A proposta aprovada pela Câmara é péssima para o arcabouço fiscal, pois antecipa o debate sobre ampliação do limite para gastar, que não tem sentido em meio à necessidade de ajuste fiscal”, afirma Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos.
“O medo das alas mais gastadoras, que motivaram o avanço do projeto na Câmara, é que o segundo relatório bimestral venha com um cenário de meta fiscal apertada, a ponto de a liberação do espaço fiscal confrontar o compromisso com o resultado primário, o que a nosso ver seria impeditivo para acionar essa licença para gastar mais”, destaca Salto.
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Como o Estadão mostrou, para conseguir abrir o crédito, a equipe econômica precisaria chegar em maio com uma estimativa máxima de déficit de R$ 13 bilhões (no momento, a projeção está em R$ 9,3 bilhões). Para ajudar nessa conta, o time de Haddad vinha contando, inclusive, com o pagamento dos dividendos extraordinários da Petrobras.
O economista da XP Tiago Sbardelotto chama atenção para o fato de a regra fiscal ser recém-criada e, mesmo assim, já ser alvo de flexibilizações. “O nome do arcabouço é regime fiscal sustentável, ou seja, uma regra que se pretende ser de longo prazo. Mas, na primeira restrição que essa regra impõe, a gente vai e muda. É uma mensagem muito ruim”, afirma.
Interlocutores da equipe econômica ouvidos pela reportagem afirmam que a Fazenda atuou para que a espinha dorsal do arcabouço fosse preservada em meio às negociações com o Congresso e que o mercado já tinha precificado a abertura desse crédito para maio. Logo, que seria apenas uma antecipação, sem dinheiro novo. Procurado formalmente pela reportagem, o ministério não quis se manifestar.
A maior parte do mercado já tinha esses R$ 15,7 bilhões na conta, mas acho que ninguém esperava uma estratégia para obtê-los a qualquer custo, mudando, diretamente, a regra do arcabouço”, afirma Jeferson Bittencourt, economista da ASA Investments e ex-secretário do Tesouro Nacional. “Esperava-se que o governo tivesse que fazer algum esforço adicional de busca de receita ou contenção de gastos para ter acesso a este espaço que é permanente.” Sbardelotto, da XP, avalia que, caso essa nova redação prospere no Senado, o governo poderá abrir o crédito imediatamente, logo após a sanção da lei. “O decreto é bem mais rápido (do que o PLN). Além disso, dá uma maior autonomia para o Executivo fazer essa alocação. Isso é um ponto importante”, diz.
Esse aspecto, porém, ainda não está pacificado. Técnicos do Congresso que acompanham o Orçamento apontam que há dúvidas sobre a nova redação da lei, e se o governo realmente poderia abrir esse crédito por meio de decreto. Um dos pontos em análise é de que a abertura desse valor deveria obedecer as autorizações da Lei Orçamentária Anual (LOA), o que poderia inviabilizar o valor total de R$ 15,7 bilhões.
O próprio relator do projeto afirmou que, no entendimento dele, o recurso dependerá de aprovação do Congresso. “A destinação é livre, cabendo a abertura de crédito. Aí o parlamento decide onde Executivo pode gastar. Até lá, vai ter acordo (com o governo) para a destinação, é uma discussão política futura”, disse Rubens Pereira Junior.
Na primeira versão do relatório, a mudança era ainda mais drástica no arcabouço. A proposta eliminava a possibilidade de redução nas despesas do Orçamento de 2025 caso o aumento efetivo de receita de 2024 não seja o esperado pelas estimativas atuais. Nesse caso, é uma “punição” imposta pelo arcabouço fiscal. Mas, ao apresentar um novo parecer, o relator incorporou a punição.
Há questionamentos, também, se a autorização dada pelo projeto não teria um vício de iniciativa. Por se tratar de matéria orçamentária e uma autorização expressa para abertura de crédito suplementar, o presidente da República tem competência exclusiva para propor a medida, que precisa de aprovação do Congresso posteriormente e de um aval da Comissão Mista de Orçamento. Procurado pelo Estadão, Lira afirmou que cabe ao governo dizer para onde vai o dinheiro. Questionado sobre os termos do acordo para a aprovação da proposta, o presidente da Câmara não se posicionou. A reportagem também procurou a Casa Civil, que não enviou resposta até o fechamento da reportagem.
Fonte: Estadão