Guerra fiscal vai acabar, mas estados ainda podem atrair empresas, diz ex-secretária
Para Cristiane Schmidt, que liderou a pasta de Economia de Goiás, Reforma Tributária beneficiará produtividade e crescimento, mas precisa ser revisada
Douglas Gavras
São Paulo
Para a ex-secretária de Economia do estado de Goiás Cristiane Schmidt, a guerra fiscal, do jeito que existe hoje, vai chegar ao fim com a aprovação da Reforma Tributária, e os estados terão de buscar formas mais transparentes e alinhadas com experiências internacionais, para atrair empresas e investimentos.
Ela também avalia como fundamental a aprovação do texto na Câmara dos Deputados, mas diz que a versão tem mais exceções do que deveria e espera que ela seja revisada no Senado.
Schmidt é uma das entrevistadas do podcast que deu origem ao livro \”A Arte da Política Econômica: Depoimentos à Casa das Garças\” (ed. Intrínseca, selo História Real; 645 págs.; R$ 119,62). Em São Paulo, o lançamento vai ocorrer no dia 16 de agosto, a partir das 18h30, na Livraria da Travessa Iguatemi (av. Brigadeiro Faria Lima, 2232, Jardim Paulistano).
Além dela, o volume reúne 30 entrevistas a especialistas —como Persio Arida, Ana Carla Abrão, Gustavo Franco, Elena Landau, Maria Silvia Bastos e Bernard Appy— e tem prefácio de Edmar Bacha, sócio fundador e diretor da Casa das Garças.
Recentemente, Schmidt foi convidada para ser consultora sênior para o Banco Mundial, e irá prestar consultoria em temas, como a própria Reforma Tributária, mudança que entende como algo que vai trazer ganhos para a economia brasileira nos próximos anos.
Qual balanço pode ser feito da aprovação da Reforma Tributária pela Câmara?
É preciso fazer uma contextualização é importante: essa é uma reforma que apesar de estar sendo discutida há mais de 30 anos, ela tomou forma no começo de 2019. O deputado Baleia Rossi (MDB-SP) apresentou a PEC [proposta de emenda à Constituição] 45 e o senador Davi Alcolumbre (União-AP) apresentou a PEC 110, com esse ímpeto de que fosse aprovada uma reforma no consumo. O Parlamento deu forma a essa discussão, dizendo que gostaria de aprovar esse projeto.
É só para termos em mente que isso está sendo discutido desde 2019, não é uma conversa que começou com o presidente Lula. É uma reforma do Parlamento, que tomou forma com Jair Bolsonaro, não pertence a nenhum governo, é apartidária e é do Brasil. Ela veio em um bom momento, em que a nossa produtividade tem estado baixa há 20 anos. Não estamos criando uma jabuticaba, a gente tinha uma jabuticaba e estamos entrando em um modelo que muitos países utilizam hoje.
Mesmo com as mudanças que foram feitas para aprovação, a sociedade vai ganhar com a reforma?
A primeira grande vantagem da reforma para o contribuinte é ter uma baita simplificação e desburocratização, vamos eliminar quase 5.570 legislações municipais, 27 estaduais e mais duas ou três da União e transformar em uma só legislação, com uma base tributária. Vai ter uma regra que vai reger as duas contribuições. Outra coisa importante é a não ter cumulatividade completa do imposto, com o ICMS os estados nunca devolvem crédito completamente (o que causa judicialização).
Outro litígio que vai acabar é a classificação de bens ou serviços, como serviços pagam menos, muitos contribuintes tentam afirmar que prestaram um serviço, enquanto o estado diz que é um bem. As empresas e os estados vão poder economizar uma fortuna. Também vai estimular as exportações, vai trazer mais produtividade e as empresas vão gastar menos tempo e dinheiro brigando para pagar menos imposto.
Os analistas parecem concordar nas críticas ao grande número de exceções. Essa também é a sua visão?
A proposta quando começou a tramitar novamente no Congresso não tinha um texto, ela ia pegar a proposta 45, da Câmara, e incorporou itens da 110. O texto final foi uma conjunção. Obviamente, o texto final acabou tendo mais exceções do que deveria, provavelmente porque as pressões políticas impuseram isso. Espero que o Senado consiga lapidar isso, a alíquota final que vai sair do IBS mais o CBS, que dizem que vai ser de 25%, ela não pode ser confirmada por ser endógena ao processo (se tiver muitas exceções, essa alíquota de referência vai ter de ser maior, pois vai haver uma neutralidade na arrecadação). A nossa alíquota vai ser a maior do mundo? A gente já paga muito imposto hoje, só não sabemos. Agora tudo vai ser transparente.
Isso vai ocorrer, por mais que tenha mais exceções do que gostaríamos. Para a Zona Franca de Manaus, por exemplo, há diversos estudos dizendo que não é ela que traz o desenvolvimento que o estado do Amazonas precisa e que esse dinheiro poderia estar sendo gasto de outra maneira, mas é muito difícil mudar isso. Mas a consequência é que a alíquota média para todo mundo vai ser menor, imagino que no Senado irão parar para refletir se vale a pena colocar o turismo e a parte cultural como exceções, a pergunta é se isso é tão importante assim a ponto de onerar os demais e dar o benefício.
Pela sua experiência, qual deve ser agora o maior desafio para os secretários estaduais de Fazenda?
As secretarias estaduais de Fazenda, se a gente olhar as burocracias, os grandes temas que estão postos: os governos vão perder autonomia, discordo pois os governadores, prefeitos e o presidente continuam com a autonomia de fixar suas alíquotas. O IVA total vai ser a soma do que for fixado pela União e fixado por cada governador e cada prefeito.
Os governos não vão fazer guerra fiscal da maneira como existe hoje, mas claro que vão poder fazer o que o mundo faz, o chamado ‘tax competition’ [competição fiscal]. Se eu tenho uma alíquota no meu estado, por exemplo, de 9% e quero diminuí-la para poder ter uma competição maior, eu a coloco em 8%. Também posso dar subsídio para empresas ou setores, a única coisa é que ele não vai sair pela receita, por crédito outorgado, mas pelo lado das despesas.
A Guerra fiscal, como existe hoje, vai acabar após a Reforma, mas estados ainda podem atrair empresas com ferramentas mais transparentes e alinhadas com o que se faz no exterior, que seria inserir em seus orçamentos (LDO e LOA) políticas públicas de subsidios para setores ou empresas, de acordo com as leis locais.
Além disso, a autonomia legislativa vai mudar, ainda bem. A gente tinha um modelo descoordenado, que só trouxe malefícios para a economia. Uma empresa que tem filiais em três estados tem um problema tributário gigantesco, em cada lugar tem uma lei distinta e uma interpretação diferente. Vai passar a ter uma autonomia coordenada pelo Conselho Federativo. Ele não é um terceiro poder ou uma dependência da União, irá seguir normas e leis complementares aprovadas no Congresso, os Fiscos municipais e estaduais vão trabalhar de mãos dadas e sob uma legislação única.
O governo comemorou o novo arcabouço fiscal, em substituição ao teto de gastos. Ele pode ser um bom substituto para o teto de gastos?
Para mim, o arcabouço fiscal é pior que o teto de gastos. Sou muito favorável ao teto, por termos um problema de gastos no Brasil sério e todo mundo quer pagar menos imposto, mas ninguém fala que para isso é preciso gastar menos. Esse arcabouço que foi o melhor que conseguimos não estabiliza a relação dívida x PIB nos próximos anos, a expectativa é de aumento até 2026. Acho que o teto funcionou tão bem, que incomodou e as pessoas passaram a dizer que ele não funcionava.
Criou-se um arcabouço que aumentou a dependência da arrecadação, em vez de estar preocupado com contenção de gastos e avaliação de políticas públicas. Simone Tebet tem um grupo muito bom no Ministério do Planejamento e que tem essa intenção, mas vejo que a ideia do governo Lula não é exatamente ir nessa direção —não que os outros governos tenham ido, mas o teto estava lá, para segurar as despesas. A gente viu que a proporção de gastos com o teto foi amenizada, o que foi muito importante para termos um dispêndio maior na pandemia. Nesse sentido, o governo Bolsonaro conseguiu frear o nível de gastos muito mais. As perspectivas em relação aos gastos públicos ainda assustam.
Fonte: Folha de São Paulo