Carf vai julgar normalmente sob desempate pró-contribuinte, afirma presidente
O presidente defendeu que, mesmo quando há o voto de qualidade, os julgamentos do Carf são majoritariamente pró-contribuinte. Segundo ele, considerando o contencioso que se inicia na Delegacia de Julgamentos da Receita Federal (DRJ), cerca de 75% dos processos, em termos de valor, têm decisões pró-contribuinte. “O sistema é pró-contribuinte mesmo com o voto de qualidade. É um número. É um dado”, disse.
Higino afirmou que a prioridade de sua gestão é acelerar o julgamento dos processos, que, segundo ele, levam em média quatro anos para serem analisados. Ainda, salientou que já foi iniciado um estudo para a compra de equipamentos para transmissão ao vivo das sessões presenciais, aumentando a transparência.
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista:
O senhor assumiu o Carf em um momento de mudança de governo, de muitas mudanças envolvendo o tribunal. Quais são as prioridades da sua gestão?
Desde o começo da minha gestão, a prioridade, tínhamos duas: reduzir esse estoque [de processos] e reduzir o prazo [de julgamento]. Eu fui diretor da Receita e, na época, houve uma avaliação internacional que chama-se TADAT [Tax Administration Diagnostic Assessment Tool], uma avaliação de administrações tributárias do mundo inteiro e, de fato, o contencioso administrativo federal no Brasil, em termos de prazo, é absolutamente inaceitável para padrões internacionais. Para vocês terem uma ideia, as administrações tributárias que recebem a maior nota nesse quesito resolvem 90% dos casos em 90 dias.
A gente não tem que se acostumar com situações inadequadas. [É preciso] reduzir o estoque, tornar o julgamento mais célere, até porque a gente tem uma lei [a Lei 11.457/2007, que, em seu artigo 24, estipula o prazo de 360 dias para decisões em processo administrativo após o protocolo da petição inicial]. Em tese a gente deveria, nas turmas ordinárias e na Câmara Superior, gastar no máximo um ano em cada uma delas.
Acho que é um serviço que a gente precisa aprimorar em termos de qualidade para o contribuinte. A conversa com o ministro [Fernando] Haddad foi nesse sentido. Tanto que, no começo do ano, a MP 1160 foi muito olhada sob esse aspecto do voto de qualidade. Mas também tinha outra medida, que era a medida dos mil salários mínimos [elevação de 60 para mil salários mínimos do limite para o contribuinte recorrer ao Carf]. O ministro Haddad também alterou em portaria a questão do chamado recurso de ofício [recurso automático da Fazenda Pública após derrota na delegacia da Receita], aumentou esse valor [de R$2 milhões para R$15 milhões], o que já resolve muitas coisas em primeira instância.
O limite de mil salários mínimos caiu com a queda da MP 1160, certo?
Caiu na MP, está no projeto de lei [PL 2.384/2023]. Continuo achando que é importante, que a gente vai conseguir reduzir o prazo [a partir de medidas como essas]. A gente tem uma média de quatro anos [para o Carf julgar], três anos nas [turmas] ordinárias e mais um ano na Câmara Superior. Não é razoável. Não me conformo, acho que continua ruim e que eu ainda estou devendo essa melhoria. Agora, com todo esse problema, movimento de auditores, suspensão das sessões em função de um debate na ADI [7347, em que a OAB questionava a constitucionalidade da MP 1160], essa questão da portaria [139/2023] que permitiu aos contribuintes a retirada de pauta sem necessidade de justificar, mesmo com tudo isso, avançamos na nossa meta em um sentido. Nós reduzimos o nosso estoque em cinco mil processos, de 92 mil para em torno de 87 mil. Além disso, conseguimos julgar R$155 bilhões, acho que até maio. Inclusive, a gente conseguiu, com toda essa dificuldade, que o valor do estoque não aumentasse, porque continuam entrando processos. [O estoque] estava em R$1,096 trilhão, foi para R$1,097 trilhão. Agora, é um absurdo. É 10% do PIB só no Carf.
Existe alguma meta de redução do estoque e de prazos de julgamento?
Se eu pudesse pensar em um paraíso, seria 90% dos processos em 90 dias, o que é muito difícil. Mas, se a gente conseguisse chegar no que a lei manda, no máximo um ano na turma ordinária, mais um ano na Câmara Superior, eu ficaria muito feliz com isso. Seria um prazo razoável. Vai precisar de um tempo para isso, mas acho que seria bastante interessante.
No início do ano, quando foram anunciadas mudanças envolvendo o Carf, o ministro Fernando Haddad e o secretário da Receita, Robinson Barreirinhas, chegaram a associar o aumento do estoque de casos no tribunal à implementação do desempate pró-contribuinte em 2020. O senhor concorda com essa associação?
Eu não vi exatamente a entrevista, em que contexto isso foi falado. Eu acho que a gente teve muita coisa nos últimos três anos que pode ter contribuído para isso. Houve essa mudança do paradigma, houve essa questão da pandemia, houve movimento de auditores, dos conselheiros fazendários. Muita coisa influenciou para essa questão do aumento do estoque.
Mas, do meu ponto de vista, destaco que eu nunca tinha visto, e já tenho 25 anos de Ministério da Fazenda, um ministro tão envolvido com as questões do Carf.
Além das alterações já feitas, está no horizonte alguma outra mudança no Carf? Por exemplo, acabar com a paridade entre conselheiros do fisco e dos contribuintes nas turmas?
A ideia do ministro acho que está muito representada no texto da medida provisória, que foi para o PL 2384/2023. Em nenhuma dessas medidas foi encaminhada nenhuma proposta pelo fim da paridade. Então, o que eu diria até de concreto é: não vejo isso no radar.
O governo também parecia contar com o Carf para auxiliar no aumento de arrecadação. Isso gerou críticas, pois, segundo advogados tributaristas, o tribunal não é um órgão arrecadatório, mas um local para o contribuinte revisar uma autuação que considera incorreta. Como o senhor vê o papel do Carf?
Eu vejo exatamente dessa maneira. Quem arrecada é a Receita. O Carf não arrecada nada, é um órgão meramente julgador. Agora, o que se espera é que ele consiga dar respostas rápidas para o contencioso. Então, dar celeridade à questão do Carf não significa arrecadar. Fazendo uma analogia, se a Justiça se tornasse mais célere no âmbito penal, ela não é favorável nem a soltar nem a prender. O que a gente precisa é resolver as situações. O Carf nunca arrecadou, nunca vai arrecadar. As primeiras notícias [após ser nomeado] eram que eu era um fiscalista, não sei nem o que é isso. Na verdade, não sou nada disso, pois ainda nem entrei para julgar. Irei, mas ainda não o fiz.
O senhor pretende participar dos julgamentos?
Pretendo.
Este ano ainda?
Não sei quando, pois eu estou muito tomado de decisões administrativas. Tem muita coisa que eu estou fazendo além de todas essas questões ligadas a alterações legislativas, gestões em relação aos processos. Acho que minha principal função aqui é a função de gestor e também de julgador. Pretendo [julgar], mas não tenho data certa para isso.
O ministro Haddad disse que o Carf não trataria de temas sensíveis até a questão do critério de desempate ser resolvida no Congresso ou no Supremo Tribunal Federal. Como isso seria viabilizado no dia a dia?
A gente está pautando normalmente os processos. O órgão continua funcionando normalmente. Agora, quem faz a defesa da Fazenda não sou eu, é a PGFN [Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional]. Ela é quem vai montar as estratégias de defesa. O que eu gosto de destacar, neste ponto, é que as medidas que nós tivemos durante a vigência da MP [1160], as medidas que o ministro efetivou, foram medidas pró-contribuinte. Eu suspendi algumas sessões no momento de negociação da ADI [7347], e o ministro baixou a portaria 139, que permitiu aos contribuintes a retirada dos processos sem nenhum tipo de justificativa As medidas foram sempre assim, para evitar uma judicialização.
Hoje, com o retorno do desempate pró-contribuinte, existe a possibilidade de retirada de pauta se uma das partes quiser que o julgamento seja presencial, certo?
Que existia desde sempre. As portarias não são de agora, não se mexeu nessa questão normativa para favorecer a Fazenda Pública de alguma forma. Vamos tocar normalmente.
E com relação ao modelo das sessões? Vocês vão manter o modelo híbrido? Existe um critério para alternar entre as sessões virtuais e as presenciais?
Esse é um ponto bem interessante. Eu acho que é uma coisa que precisa melhorar na gestão. Foi muito confuso este ano, pois teve a MP [1160], a ADI [7347], movimento dos auditores, Portaria 139. Agora, o que eu teria de meta para o ano que vem é a gente ver se já conseguiria, no começo do ano, sair com um calendário fixo, ou previsto, entre sessões virtuais e presenciais. Existe demanda da própria advocacia nos dois sentidos. Eu acho que a gente deve preservar algumas sessões presenciais. Tem alguns meses que acho que já são grandes candidatos no ano que vem às sessões virtuais, que são os meses de férias: janeiro, fevereiro, julho, dezembro. Quando as coisas estiverem mais calmas acho que a gente poderá fazer isso [planejar com antecedência], dada também a disponibilidade orçamentária.
Outra questão que acaba democratizando o acesso à informação é poder acompanhar as sessões sem vir ao Carf. E hoje isso só é possível quando a sessão é virtual. Vocês têm algum plano de transmissão também das sessões presenciais?
Temos. A gente está até com um estudo de compra de equipamentos para tentar fazer essa adaptação. Quando a sessão é virtual, você faz do seu computador. Agora, quando você vai transmitir uma sessão presencial, você tem que ter uns equipamentos específicos de captação de áudio ambiente, tem uma outra tecnologia a ser aplicada.
Mas seria para esse ano ainda?
Eu acho que até o final do ano, começo do ano que vem, a gente conseguiria comprar esses equipamentos, porque aí depende da área de licitações e compras, que hoje não está nem na Fazenda, está no Ministério da Gestão. O importante é que existe essa meta. Desse ano para o ano que vem eu acho que seria [possível]. Eu acho que essa questão da transparência é muito importante. É meta, pode me cobrar.
Com a MP no início do ano, a jurisprudência sobre alguns temas mudou, e deve mudar novamente com a volta do desempate pró-contribuinte. Como o senhor vê esse impacto para os contribuintes?
Essa situação de alternância eventual de jurisprudência ocorre, até por questão de mudanças na sociedade. O Carf é de 1925, os primeiros conselhos. Até 2020, 95 anos, o Carf funcionou paritário e com voto de qualidade. Eu não estava aqui, mas alguns advogados que advogam no Carf disseram que acham que houve um comportamento, vamos dizer, mais receoso, talvez, de dar decisões favoráveis aos contribuintes pós-Zelotes [operação que investigou supostas irregularidades e venda de sentenças no Carf]. Os números não me falam isso. Os números demonstram que, mesmo quando há voto de qualidade, o Carf é predominantemente pró-contribuinte. E aí eu tenho números para provar.
Quais seriam esses números?
Para você ter uma ideia, do contencioso que começa na DRJ [Delegacia da Receita Federal], 50% dá razão ao contribuinte, 50% vem para o Carf. Do que vem para o Carf, metade, mais ou menos 50%, é dada razão ao contribuinte. Com o voto de qualidade, daquilo que se inicia na primeira instância do contencioso administrativo federal, 75%, em termos de valor, [a decisão] é pró-contribuinte. Eu gosto de falar em números, porque as pessoas gostam de especular. Os números demonstram que os órgãos do processo administrativo fiscal são grandes defensores dos contribuintes. Um número que eu gosto muito é que 80% dos casos não são decididos por voto de qualidade. Ou seja, só 20% [são decididos por voto de qualidade] em valores e 5% em quantidade de processos. O sistema é pró-contribuinte mesmo com o voto de qualidade. É um número. É um dado.
Aí você pode dizer: ‘Ah, mas será que é por que o auto [de infração] tem uma qualidade ruim?’. Também não acho que seja. É porque a gente tem também alguns elementos que são de um acesso à defesa ampla no Brasil. Quando existe um lançamento tributário, ainda na DRJ, às vezes eles pedem recibos e comprovantes. Se o contribuinte não apresentar, mas apresentar no contencioso, aquilo é considerado. Então, ele tem mais de um momento. Eu acho que a gente tem um espaço enorme de defesa do contribuinte no contencioso administrativo fiscal.
Do ponto de vista jurídico, o senhor vê o voto de qualidade como o mais adequado?
Sim, eu acho que ele é adequado porque mantém a paridade e permite que o contribuinte vá ao Poder Judiciário. Até porque as grandes controvérsias, a Constituição desenhou que quem deveria resolver esses litígios, inclusive entre a administração e cidadão, é o Poder Judiciário. O voto de qualidade é um modelo que os números mostram que a DRJ e o Carf são majoritariamente favoráveis ao contribuinte.
E a questão da Fazenda recorrer ao Judiciário se derrotada no Carf, o senhor acha possível?
Acho que é uma questão da PGFN, acho que não cabe muito a mim fazer essa avaliação. Não tem sido recorrente, acho que recorreu em pouquíssimos casos, não sei em que situações específicas. Agora, se você imagina que o órgão administrativo seria o órgão de autocontrole, acho que a regra de não recorrer me parece mais sensata. Mas é uma decisão jurídica mais da parte do que do órgão julgador.
Quando se estava discutindo a ADI 7347, contra a MP 1.160, houve um acordo entre OAB e governo prevendo que se o contribuinte perdesse pelo voto de qualidade poderia pagar o débito sem multa. Como o senhor vê a possibilidade de algo semelhante ser incluído no PL do voto de qualidade, que está sendo discutido no Congresso?
A norma tem essa capacidade de dar incentivos ou desincentivos ao comportamento. Acho que algum tipo de benefício que favoreça o pagamento em caso de empate é interessante do ponto de vista de resolução do litígio. Regras que incentivem o cumprimento voluntário da obrigação são bem-vindas. Se [a decisão] tiver voto de qualidade, é um indicativo de que a tese é bem controversa, não é tão pacífica.
O senhor tem uma expectativa de aprovação do PL?
Essa avaliação é uma questão mais política, muito menos do Carf e mais do Ministério [da Fazenda]. Agora, o que eu considero e destaco é que o que está no PL e na MP não é somente voto de qualidade. Primeiro acho que a regra do voto de qualidade é mais justa, é importante, mas também as outras regras para tentar acelerar os julgamentos.
Fico muito otimista com a questão da designação do relator. O PL está com pedido de urgência, em meados desse mês já tranca a pauta. Há uma sinalização muito positiva da presidência da Câmara com a designação do relator. O que acaba acontecendo é que quando você não quer decidir alguma coisa no Congresso, você não designa relator. É um bom sinal, acho que o sinal do presidente [ Arthur] Lira em relação a essa matéria foi muito bom.
O senhor está aberto para se reunir com o relator?
É óbvio. A condução política está sendo feita pelo ministério, mas qualquer esclarecimento que o relator precise e que ele queira, claro. É obrigação, é dever.
Uma medida da gestão anterior do Carf foi fazer sessões em São Paulo. O senhor pretende retomar?
Eu até brinco, queria fazer em Fortaleza, que é minha terra. Fazer em Recife, Salvador, Belo Horizonte. Eu não sei se houve um estudo de que isso fosse mais favorável ao contribuinte. Para mim, se o custo não for maior para a administração e se isso for melhor para o contribuinte, não tenho problemas. Não está no meu radar agora, mas não é uma coisa demonizada e que eu seja absolutamente contrário.
Vários conselheiros do Carf vão concluir o mandato esse ano. Já está ocorrendo o processo de nomeação de novos conselheiros? Isso deve afetar a jurisprudência?
Isso segue o fluxo normal. Agora, acho que o impacto na jurisprudência está mais relacionado ao perfil das indicações [da Receita Federal e das confederações empresariais e sindicais], que a gente não conhece muito. De toda sorte, acho que a oxigenação é boa sempre, em todo momento.
Mariana Branco –
Gabriel Shinohara
Fonte: JOTA