Cannabis medicinal se torna realidade no Brasil, mas esbarra na falta de legislação
Em abril de 2014, uma decisão inédita da Justiça abriu caminho para que hoje o uso medicinal da Cannabis seja uma realidade no país, ainda que esbarre em desafios, como a falta de uma legislação específica e alto custo. À época, os moradores de Brasília Katiele e Norberto Fischer buscavam alternativa para tratar o diagnóstico de síndrome de CDKL 15 da filha Anny. Aos 5 anos, a criança chegou a sofrer até 80 convulsões por semana devido ao raro distúrbio neurológico. Um medicamento à base de canabidiol, no entanto, se mostrou promissor.
Primeiro, os pais arriscaram e fizeram uma importação ilegal. O medicamento zerou as convulsões, e a partir daí começou a luta na Justiça para importar a substância legalmente, e eles conseguiram o aval. No ano seguinte, o país deu o primeiro passo na regulação do composto. Uma decisão colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a RDC 17/2015, passou a permitir a importação de medicamentos à base de canabidiol em caráter excepcional, por meio da prescrição de um médico. Só naquele ano, foram emitidas 850 autorizações para importação de medicamento à base da substância.
Desde então, segundo a agência, já foram concedidas aproximadamente 158 mil autorizações, quase 80 mil apenas no ano passado, com prescrições para tratamento de enfermidades como Alzheimer, Parkinson, glaucoma, depressão, autismo e epilepsia. “Temos um cenário robusto, com mais de duas mil pessoas plantando Cannabis sativa (maconha) em suas casas a partir de decisões judiciais, temos seis associações com decisões judiciais favoráveis a elas poderem cultivar, preparar e fornecer o remédio aos seus associados. O Brasil tem 25 produtos nacionais com autorização sanitária, 450 estrangeiros com autorização”, diz Emílio Figueiredo, advogado pioneiro no “direito canábico” e diretor da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma).
Embora à disposição nas prateleiras das farmácias e por meio de associações ou importação, a Cannabis medicinal ainda é um tratamento pouco acessível devido ao alto custo. De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), do segundo ao quarto trimestre de 2021, quando os compostos mais baratos foram incluídos nas farmácias, as vendas triplicaram. Ainda assim, de acordo com a coordenadora do Grupo de Trabalho de Insumos de Cannabis da associação, Carolina Sellani, o tratamento continua sendo caro.
“Nas farmácias, há produtos que podem custar até R$ 2 mil, e os mais baratos estão girando em torno de R$ 300, R$ 400. É um tratamento que não é trivial”, diz. Sellani explica que há uma pressão para tentar torná-los mais acessíveis e diversos. “Os tratamentos são bastante personalizados, é importante ter uma diversidade de concentrações à disposição dos pacientes e facilitar acesso ao produto na farmácia”, pontua.
Histórico regulatório
A construção do atual cenário regulatório ocorreu a passos lentos, mas com um salto nos últimos anos. Em 2016, a Cannabis medicinal foi incluída na lista de substâncias especiais de controle da portaria 344, de 1998, do Ministério da Saúde, o que facilitou a importação de derivados. O tema, porém, só entrou na agenda regulatória da Anvisa na edição 2017-2020. Também em 2017, a agência aprovou o primeiro registro no Brasil de medicamento à base de Cannabis, e em 2020 autorizou o primeiro produto de Cannabis, por meio da RDC 327, de 2019.
Essa resolução, que trata da regularização dos produtos no mercado brasileiro, é tão importante quanto aquela de 2015, primeira a permitir a importação excepcional para uso pessoal, a RDC 17 — que foi atualizada ano passado e passou a vigorar como RDC 660. Toda essa movimentação regulatória permite que o mercado brasileiro hoje tenha medicamento específico com CBD e THC em sua composição, produtos como fitoterápicos e fitofármacos, além de compostos importados. Os produtos disponíveis nas farmácias são 25, 14 com canabidiol e 11 à base de extratos de Cannabis sativa.
Na avaliação de Sellani, “um desafio que o setor enfrenta hoje em relação à regulação é a disparidade entre as normas internacionais sobre o tema e a falta de harmonização, o que muitas vezes se torna uma dificuldade na importação de um produto”. Nos Estados Unidos, por exemplo, o canabidiol não é considerado controlado e não tem a exigência de ter grau farmacêutico para ser comercializado. Para entrar no Brasil, esse composto precisa se adequar e atender ao rigor de produção farmacêutica exigido pela Anvisa.
“A discussão regulatória da Cannabis medicinal é um desafio ainda global, existe pouca homogeneidade entre os países, é tudo muito novo. A Anvisa fez uma regra com as exigências necessárias para garantir qualidade do produto e deu abertura com a RDC transitória [a 327] para as empresas poderem fazer investimentos em estudos clínicos para que esses produtos sejam registrados como medicamento. Temos um arcabouço regulatório robusto quando comparado com outros países, e que pode ser considerado mais complexo porque é diferente fora do Brasil, mas é previsível”, pontua. Vale ressaltar que os produtos importados, por meio da RDC 660, não passam pelo crivo de avaliação da Anvisa, são de responsabilidade do médico e do paciente.
Há, ainda, um entrave em termos de legislação nacional “porque você acaba não tendo a força que precisa para que esse setor se regulamente de forma ampla, inclusive para a parte de previsão de cultivo e de medidas que fogem do poder da Anvisa”. De acordo com Sellani, um dos pontos fundamentais de uma legislação federal é a previsão de cultivo no Brasil. “Quando a gente fala da possibilidade de cultivo aqui, falamos da possibilidade de produção insumo farmacêutico no Brasil, gerando uma redução no custo final do produto.”
Justiça
O alto custo do tratamento é um dos fatores que tem levado pacientes a recorrerem à Justiça, especialmente em busca de autorização para o autocultivo da Cannabis sativa com a finalidade de extrair o óleo medicinal. Em junho do ano passado, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi favorável, de forma unânime, a casos de pacientes que alegaram o alto custo da importação como entrave para continuar o tratamento de enfermidades como transtorno de ansiedade e insônia, sequelas do câncer e ansiedade generalizada. A sentença abriu precedente para casos semelhantes.
Relator de um dos casos, o ministro Rogerio Schietti Cruz afirmou que “não há dúvidas de que deve ser obstada a repressão criminal” do paciente, uma vez que a produção do óleo se destina apenas a fins terapêuticos, com base em receituário e laudo assinado por médico e chancelado pela Anvisa ao autorizar a importação.
Alto custo, no entanto, não é o único motivo que faz o tema ir parar no Judiciário. “Tem a demanda pelo reconhecimento medicinal, pelo cultivo, pelo fornecimento do remédio pelo estado. Há uma série de tipos de demanda, desde a esfera criminal ao reconhecimento de um direito”, diz Emílio Figueiredo, da Rede Reforma. A judicialização tem estimulado a categoria a se especializar com pós-graduação, cursos de extensão e cursos livres na área. Há ainda comissões específicas de Cannabis medicinal nas OABs.
Figueiredo acrescenta ainda que não há normas claras protegendo as pessoas, sejam físicas ou jurídicas, nem mesmo o governo e os pesquisadores. “É preciso um reconhecimento de direito para se ter uma regulação, a partir do momento em que duas mil pessoas podem plantar Cannabis e fazendo seu remédio. Isso traz uma consistência”, argumenta.
Amparo legal
O ideal, de acordo com ele, seria que o Congresso aprovasse uma legislação capaz de amparar as condutas da Cannabis para fins de proteção à saúde. Na avaliação do advogado, o Projeto de Lei 399/15, com tramitação mais avançada, tem uma deficiência básica, por não estabelecer o autocultivo, “mas prevê produção nacional, associação, pesquisa, uso veterinário, industrial, farmácia de manipulação, trazendo alguma segurança jurídica para quem vai trabalhar com Cannabis ou depende dela para proteger a própria saúde”.
Relator do projeto na comissão da Câmara, o deputado Luciano Ducci (PSB-PR) considera que a proposta avança à medida em que permite a produção nacional. “É um medicamento que precisa ser produzido no país para dar conta da enorme gama de pessoas que precisam. Estamos lutando bastante para que a indústria farmacêutica possa produzir no Brasil um produto cultivado aqui com custo muito mais baixo para a população”, diz.
Ao JOTA, ele afirmou que um grupo de parlamentares busca uma agenda com o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para pautar o projeto no plenário ainda em março. Se aprovado, o texto segue para o Senado.
Países vizinhos ao Brasil já permitem o cultivo de maconha para fins medicinais e terapêuticos ou estão avançados em relação ao uso da substância. A Argentina, por exemplo, concede desde 2020 a autorização para pacientes, organizações e pesquisadores. O Uruguai permite o cultivo, inclusive para uso recreativo, desde 2013, assim como o Chile, que descriminalizou o autocultivo para fins recreativos em 2015. Já a Colômbia tem regras que permitem o uso da maconha medicinal desde a década de 1990.
Mesmo com a legislação em tramitação, a tendência é de popularização do composto na rede pública de saúde. No dia 2 deste mês, o governador de São Paulo, Tarcísio Freitas (Republicanos), sancionou uma lei que prevê a inclusão de produtos à base de Cannabis pelo SUS. A Secretaria de Saúde, no entanto, ainda vai discutir como colocar a medida em prática e definir em quais situações ela poderá ser prescrita. A proposta segue exemplo de outras localidades do país. No Distrito Federal, o canabidiol está desde 2016 na lista de produtos distribuídos pela rede pública de saúde no Programa de Prevenção à Epilepsia e Assistência Integral às Pessoas com Epilepsia.
Pesquisadora do Hospital Sírio-Libanês sobre o assunto e uma das primeiras a prescrever a substância para fins medicinais no Brasil, Paula Dall’Stella descreve o cenário brasileiro como “bastante favorável para o médico e para o paciente”. A Cannabis, segundo a médica, tem uma peculiaridade em relação a outros medicamentos: a capacidade substituir vários deles, como analgésico, sonífero, ansiolítico, antidepressivo. “Essa combinação faz com que muitas vezes um paciente-polifarmácia, que utilizava um medicamento para cada coisa, possa substituí-los pelos canabinoides.”
Ainda de acordo com a médica, há bastante opção. O obstáculo é a educação médica e o acesso. “A problemática maior atualmente não é escassez de produto, mas o médico saber prescrever, ser caro e ter uso contínuo”, explica. Para ela, o caso de São Paulo representa um avanço na possibilidade de tornar o composto mais acessível. A pesquisadora, porém, destaca que ainda será preciso disciplinar quais patologias, se vai haver restrição, quais os seus produtos e como vai ser o cadastro.
Grasielle Castro – Repórter freelancer
Fonte: JOTA