A tabela SUS pode resolver o financiamento do piso da enfermagem?

A discussão sobre as fontes de financiamento do piso da enfermagem está longe de ter um desfecho. Mas um efeito colateral já está nítido: a retomada do debate sobre a tabela do SUS.
Diante da dificuldade em tornar realidade a extensa lista de propostas no Congresso para obtenção de recursos, coube ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sugerir a atualização dos valores usados para pagar clínicas e hospitais e outros prestadores de serviço conveniados com o SUS. Uma saída aparentemente simples, que cai no gosto de eleitores e de parte dos prestadores, mas com efeito limitado.
A deixa foi aproveitada por outros atores, que passaram a defender a urgência do reajuste, independentemente da discussão sobre o piso da enfermagem.
O tema está longe de ser unanimidade. Pelo contrário. Quem acompanha de perto as dificuldades em saúde garante que o modelo de remuneração está superado. Críticos asseguram ainda que o simples aumento da tabela apenas posterga uma discussão difícil, mas urgente para o país: a mudança na lógica de pagamento.
“Os valores estão desatualizados há algum tempo. Mas nem de longe isso servirá para resolver o problema. Nem de enfermeiros, nem da saúde pública”, afirma o secretário executivo do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Junqueira. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, também reagiu à proposta de aumento. E disse não haver como atualizar algo que está em desuso.
“É uma ferramenta superada. Induz a escolha seletiva de procedimentos. Há o incentivo por fazer aqueles que são mais bem remunerados. Enquanto isso, aqueles mais baratos e igualmente importantes ficam em segundo plano”, resume o professor da Universidade Federal de São Paulo e ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro.
Num artigo recente, Chioro comparou a tabela à personagem Geni da música de Chico Buarque, “Geni e o Zepelim”. “O tema vem à tona em todas as eleições, como se a defasagem fosse a razão de todos os problemas. Mas é uma falsa questão”, resume.
A começar porque os valores não representam tudo o que prestadores de serviços recebem. “Há outros repasses, que não são considerados no discurso. Como incentivos”, diz o secretário executivo do Conasems. Junqueira afirma que para procedimentos de média e alta complexidade, cerca de 40% é pago por meio de tabela. “Há incentivos para UPAs, para SAMU, por exemplo, e isso quase nunca é mencionado.”
Chioro reconhece que os valores da tabela há tempos não são atualizados. Mas diz ser necessária coragem, de forma a se resgatar um processo que teve início no início dos anos 2000, com a contratualização de serviços. Uma transição de modelo começou a ser feita, mas o processo não foi finalizado. E as distorções foram mantidas. “Somos campeões em transplantes, procedimentos muito bem remunerados. Mas temos dificuldade para fazer biópsias. Fazemos cirurgias de catarata. O que é ótimo. Mas há milhares de brasileiros com problemas de refração que não são corrigidos. Conseguimos fazer hemodiálise, mas não o número de consultas com nefrologia para evitar a doença renal crônica.”
Chioro, que com colegas participou da construção de programa da área de saúde de candidaturas do PT para o Executivo, avalia que o modelo da tabela – herdado do Inamps –, gera fila e aumenta a desigualdade. E está bem distante da contratualização dos serviços por metas, como já é feito em outros países. “Mesmo nas OS. Por que elas não questionam por reajuste de tabela? Porque o sistema de pagamento é outro.”
O diretor-executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), Antônio Britto, defende uma discussão urgente sobre a mudança na lógica de pagamento. “É preciso separar duas questões. Evidentemente, o SUS está subfinanciado, precisa de mais dinheiro. Mas a necessidade de mais recursos não significa dar sobrevida a um sistema de remuneração falido, que não ajuda pacientes e o país.”
Para Britto, a remuneração por tabela não distingue instituições que têm mérito das que não têm, perpetua a desigualdade e ainda, as injustiças de financiamento.
“O desafio do próximo governo é de ao mesmo tempo obter novas fontes de financiamento e evitar que esses recursos novos sejam aplicados num modelo que faliu, que se esgotou”, completa Britto.
Há consenso de que as resistências serão inúmeras. Primeiro, porque o sistema é cômodo para parte dos prestadores. Além disso, uma mudança exigiria que a saúde tivesse um financiamento mais consistente para garantir que todos os pagamentos fossem feitos não de forma pontual, mas por desfecho.
Na lógica da contratualização, o pagamento é feito por paciente, pelo conjunto do cuidado. O pagamento não é feito por exame, por consulta, pelo pré-operatório, reabilitação. A iniciativa parece lógica, mas exige um esforço para sua execução. A necessidade de ter uma rede integrada de atendimentos, a oferta de equipes multiprofissionais. E, para completar, um sistema eficiente que consiga avaliar a qualidade dos serviços prestados. Não é algo que se consiga da noite para o dia.
Junqueira afirma que uma lei com diretrizes básicas está em vigor. “Mas é preciso mais.” Para Chioro, o caminho tem como ponto de partida um acordo entre as três esferas de governo: União, estados e municípios e ainda com prestadores.
Britto observa que a lógica de pagamento por indicadores e por desfecho enfrenta uma resistência envergonhada. Publicamente, várias instituições dizem ser favoráveis à mudança. Mas o fato é que o modelo atual é cômodo, não exige avaliação de resultados, tampouco a comparação com indicadores de outros serviços.
“Essa é uma ferramenta essencial. Para melhorar a qualidade, precisamos avaliar o que está sendo feito. Quantos dias de internação? Houve recaída? Quanto tempo demorou entre o diagnóstico e o tratamento efetivo”, diz Britto. Para o diretor da Anahp, essa avaliação tem de ser feita tanto no SUS quanto na saúde suplementar. “É preciso ter uma política de avaliação de resultado.”
O esforço para essa mudança não é simples, mas precisa ser enfrentado. Caso contrário, de crise em crise, a discussão ficará apenas em torno do valor da consulta, da cirurgia ou de um tratamento específico.
Da forma como está, ganha mais quem produz mais. Isso não significa, no entanto, segurança e tratamento de qualidade. Sim, é preciso garantir o transplante. Mas é preciso também o acompanhamento eficaz na atenção primária, para garantir que a pressão esteja controlada ou a consulta com especialista, se necessário, não demore uma eternidade. Quanto mais a rede estiver articulada, mais a saúde sairá ganhando.
Lígia Formenti – Editora e analista de Saúde do JOTA


Fonte: JOTA

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