STF pauta ação que pode influenciar inquéritos da fake news e atos antidemocráticos
O Supremo Tribunal Federal (STF) pautou para quarta-feira (28/9) o julgamento sobre a validade de um acordo de cooperação internacional assinado entre o Brasil e os Estados Unidos para o compartilhamento de dados de usuários armazenados por empresas multinacionais de tecnologia.
O resultado pode impactar diretamente em limites da soberania nacional, da cooperação internacional e na atuação do Judiciário, do Ministério Público e da polícia brasileira.
Um dos pontos mais sensíveis é a possível repercussão em inquéritos como o das fake news e o dos atos antidemocráticos, em razão de um possível prejuízo na obtenção de dados estrangeiros para as investigações. Além disso, a resposta do Supremo também pode mudar de maneira brusca a relação das gigantes de tecnologia com o Brasil.
A ação (ADC 51) foi ajuizada pela Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação (Assespro Nacional), que pede para que o Supremo confirme a validade do Decreto Executivo Federal 3.810/2001, que promulgou o Acordo de Assistência Judiciário-Penal entre o Brasil e os Estados Unidos (Mutual Legal Assistance Treaty – “MLAT”) e, assim, que ele seja o caminho utilizado pelas autoridades brasileiras para se conseguir informações sobre comunicações privadas de usuários.
O pedido da Assespro vem após distintas decisões que tribunais e magistrados brasileiros têm dado para obter acesso a provas importantes para uma investigação criminal, muitas delas buscando caminhos alternativos ao MLAT, ou seja, intimando diretamente as empresas no Brasil, ou por carta rogatória, sem recorrer ao acordo. Pelo documento, os pedidos judiciais devem ser feitos entre o Ministério da Justiça do Brasil e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Na visão das empresas de tecnologia, o descumprimento do MLAT coloca em risco a segurança dos dados dos clientes e atrapalha as relações diplomáticas entre os países porque não prioriza a cooperação. As gigantes de tecnologia defendem que a competência para determinar a entrega de dados dos usuários é da autoridade local onde o provedor de aplicação está localizado.
As multinacionais alegam ainda que, como grande parte dos provedores de aplicação que atuam no Brasil estão radicados nos Estados Unidos, essas empresas correm o risco de serem penalizadas no país de origem ao entregarem os dados à justiça brasileira sem o cumprimento do MLAT, uma vez que a legislação estadunidense apresenta uma série de restrições ao compartilhamento de dados pessoais.
Além disso, a legislação dos Estados Unidos autoriza apenas entidades governamentais locais a obrigar provedores de serviços a divulgar conteúdo de comunicações privadas, com algumas exceções. Porém, enviar informações diretamente ao judiciário estrangeiro não está entre as exceções.
Órgãos brasileiros defendem que a via para conseguir as informações dos provedores não pode ser apenas a do MLAT pois prejudica a celeridade processual e há conflito com a soberania nacional se sujeitar às leis de outro país para ter acesso a informações importantes para investigações criminais e resolução de casos penais no Brasil. Segundo dados do Ministério da Justiça apresentados em audiência pública no Supremo, entre 2016 e 2019, 74% dos pedidos feitos pelo Brasil aos EUA por meio do MLAT não tiveram resposta positiva e apenas 26% tiveram cumprimento total ou parcial. Além disso, o tempo médio de resposta é de dez meses.
As entidades brasileiras defendem que o artigo 11 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) autoriza que as autoridades brasileiras requisitem diretamente a empresas estrangeiras que prestam serviços ou tenham filial no Brasil dados de comunicação telemática cuja sede de controle de dados não esteja localizada em território brasileiro.
Inclusive, as autoridades brasileiras aceleraram a aprovação no Congresso Nacional, em dezembro de 2021, antes do julgamento da ADC 51, da adesão do Brasil à Convenção sobre o Crime Cibernético, celebrada em Budapeste, na Hungria, em novembro de 2001 (Projeto de Decreto Legislativo 255/2021).
A matéria teve como relator o senador Nelsinho Trad (PSD-MS). Trata-se do primeiro tratado internacional sobre os chamados cibercrimes. Até junho de 2021, o documento tinha sido assinado por 66 países, além de usado por outros 158 como orientação para suas legislações nacionais. Por essa convenção, aumenta a cooperação entre os países e há espaço maior para que as legislações locais sejam aplicadas.
Inquérito das fake news e processo eleitoral
Um dos pontos mais sensíveis da decisão sobre o compartilhamento de dados somente via acordo de cooperação entre Brasil e Estados Unidos é o inquérito das fake news (INQ 4781), que tramita no STF, e a atuação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do controle de informações falsas contra o processo eleitoral.
Em memorial apresentado nos autos, o Ministério Público Federal defendeu que as investigações como a do inquérito das fake news e os ataques às instituições seriam “sensivelmente comprometidas”. Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), o MLAT é constitucional. No entanto, não pode ser a única via para a obtenção de importantes dados no exterior.
No texto, assinado pelo Procurador-Geral da República (PGR), Augusto Aras, ele ainda reforça: “(…) são constantes e orquestrados os ataques pela internet contra as instituições e o Estado Democrático de Direito que restarão inalcançáveis se o Judiciário for submetido ao critério estrangeiro do que é e do que não é liberdade de expressão”.
Na visão de Aras, inúmeras infrações que são apenadas gravemente pela legislação brasileira não mais poderiam ser investigadas. Segundo ele, “casos de incitação ao terrorismo, infrações eleitorais, racismo, para citar apenas alguns exemplos, não poderiam mais ser investigados, pois autoridades norte-americanas não atendem a pedidos de cooperação internacional referentes a fatos que estão protegidos, naquele país, pelos termos da Primeira Emenda da Constituição norte-americana“.
A PGR entende que impor o MLAT para a obtenção de dados de comunicação de brasileiros colhidos em território nacional implicaria a necessidade, por exemplo, de que a infração investigada também fosse considerada crime no país-sede da empresa que coletou os dados. Tal situação faria com que o Poder Legislativo brasileiro se submetesse ao Poder Legislativo de outros países, com prioridades e interesses próprios, ferindo assim a soberania nacional.
“Frise-se, ainda, que o eventual acolhimento da tese exordial sujeitaria as autoridades brasileiras às conveniências das empresas provedoras. A decisão do local da sede de uma empresa é eminentemente de caráter corporativo, visando a melhor solução para a lucratividade da sociedade empresária e, não raras vezes, evitar o reconhecimento de direitos a usuários. Entretanto, apesar de ser uma decisão exclusivamente privada, acaba por afetar a atuação das autoridades do local onde essa empresa presta serviços e atua”.
O próprio Facebook Brasil chegou a pedir ao ministro Gilmar Mendes, relator da ADC 51, que concedesse medida cautelar para impedir a execução de medidas de responsabilização legal de funcionários de empresas brasileiras filiadas a estadunidenses, como é o caso do Facebook, caso deixem de cumprir ordens de fornecimento de dados de usuários das redes sociais. A petição enviada a Gilmar Mendes cita um despacho de Moraes envolvendo o Facebook Brasil, de 10 de novembro de 2020, no âmbito do inquérito 4.828, que investiga os atos antidemocráticos.
Na ocasião, Moraes determinou o fornecimento de conteúdo de comunicações privadas de perfis apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), mas a empresa afirmou que não poderia cumprir a decisão por conta da legislação dos Estados Unidos. Diante da negativa, Moraes cogitou multar e responsabilizar o diretor do Facebook Brasil. No entanto, Mendes indeferiu o pedido de liminar que poderia colocar limites à atuação do ministro Alexandre de Moraes nos inquéritos que investigam manifestações antidemocráticas e fake news.
Advogada da Assespro Nacional e responsável pela ação, Adriele Ayres Britto refuta os argumentos de que o acordo do MLAT atrapalha investigações no Brasil e os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos. Ela explica que o acordo de cooperação deve ser aplicado para o fornecimento de conteúdo de comunicações, mas não é necessário para metadados. Por exemplo: os registros de acesso a serviços ou registros de comunicações (data/hora) são metadados importantes para investigações e que podem ser obtidos por autoridades brasileiras sem necessitar do MLAT.
Em relação ao caso das fake news e dos antidemocráticos, a advogada lembra que são crimes que normalmente as postagens são públicas e que o carro-chefe das demandas desses inquéritos não necessitam de conteúdo de conversas privadas. “No inquérito das fakes news há um pressuposto lógico de publicidade das mensagens, dos posts, dos áudios, vídeos e fotos, que não guarda relação com o procedimento previsto no MLAT. Como se trata de conteúdo de comunicação privada entre os usuários, há previsão em tratado internacional de um devido processo legal a ser observado”, explica. Segundo ela, informações como quem financia as fake news eventualmente podem ser acessadas por metadados.
“Tanto que o inquérito [das fakes news] corre e não se tem notícia que haja recalcitrância das plataformas em entregar o conteúdo. O que elas precisam é se resguardar em relação à legislação norte-americana para que não sejam objeto de sanção da legislação americana, que é extremamente severa”.
Na análise do presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta, a decisão na ADC 51 vai afetar decisões recentes no Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como a decisão de suspender o Telegram no Brasil. “Se essa ação [ADC 51] chegar a uma conclusão que só pode utilizar a via da cooperação internacional ou a carta rogatória para se obter informações, as regras previstas pelo TSE e as investigações feitas pelo Supremo caem por terra porque elas partem de uma outra premissa”, explica.
“As investigações partem da premissa de que essas empresas são obrigadas a ter uma relação com a Justiça eleitoral, tem que ter representante no Brasil, esses representantes têm que prestar as informações rápidas e diretamente. Essa discussão está totalmente presente tanto nos inquéritos do Supremo quanto na regulamentação que o TSE fez sobre relacionamento com o Telegram e outras redes sociais”, acrescenta.
Cazetta destaca que no Brasil o conceito de liberdade de expressão é diferente dos Estados Unidos, uma vez que aqui a liberdade de expressão está relacionada com a responsabilidade. Dessa forma, para ele, se o Brasil tiver apenas o MLAT como mecanismo de acesso a informações, pode ter dificuldade com investigações sobre mensagens de ódio ou preconceito.
O procurador também ressalta que os metadados são importantes, mas são apenas parte da investigação, que pode necessitar de mais informações. “Quando você trabalha com metadados você está trabalhando na lógica da inteligência, você pode identificar tendências e, a partir dessa tendência, direcionar os seus esforços de investigação. Porém, se você trabalha só com a lógica da inteligência, não trabalha com a lógica da punição das pessoas envolvidas, ou seja, da persecução penal, na lógica de apurar a responsabilidade. O nosso sistema e boa parte dos sistemas jurídicos do mundo trabalham com essa possibilidade de informação”, explica.
“Há um negócio envolvido. Esse negócio dá lucratividade a essas empresas e essas empresas olham o Brasil como um mercado relevante e, portanto, elas também têm que olhar o Brasil como um local em que elas precisam cumprir as regras”, defende o procurador.
Flávia Maia – Repórter em Brasília.
Fonte: JOTA