Carf: mudanças nas turmas podem afetar entendimentos em temas do setor automotivo
Decisões sobre redução do II sobre veículos para transporte de pessoas com deficiência podem mudar
Condições para a redução do Imposto de Importação sobre veículos destinados ao transporte de pessoas com deficiência e a natureza do hold back (bonificação paga às concessionárias) estão entre os temas discutidos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) envolvendo o setor automotivo. Nas duas discussões, o contribuinte vem perdendo no tribunal administrativo.
Outros temas que, embora não sejam exclusivos, têm empresas automotivas como partes com certa frequência são a suspensão do IPI na saída de estabelecimentos equiparados a industrial, preços de transferência e planejamento tributário. Isso ocorre porque as discussões envolvem pessoas jurídicas com características comuns no setor, o que inclui multinacionais, importadoras e integrantes de grupos econômicos. Nestes assuntos os contribuintes tiveram vitórias recentes devido à regra do desempate pró-contribuinte.
Vale destacar, ainda, que o cenário com relação aos temas pode mudar em razão de recentes alterações na composição das turmas da Câmara Superior do Carf. Na 3ª Turma da Câmara Superior, que julga casos sobre IPI, PIS, Cofins e Imposto de Importação, os conselheiros Rodrigo Pôssas e Luiz Eduardo de Oliveira Santos, representantes do fisco, foram destituídos do cargo. Pôssas foi substituído pela conselheira Liziane Angelotti Meira, também nomeada presidente da 3ª Seção do Carf. O substituto de Santos deve ser Rosaldo Trevisan.
Para Cassio Sztokfisz, sócio do Schneider Pugliese, as mudanças podem afetar, por exemplo, a posição do colegiado na análise da natureza do hold back. “O fisco entende que [o hold back] é uma subvenção que a montadora dá para a concessionária e, como subvenção para custeio, entraria na receita bruta da empresa. Mas saíram o Luiz Eduardo e o Pôssas, que eram votos favoráveis à Fazenda. Não dá para saber, mas pode ser que a gente tenha alguma alteração”.
Já na 1ª Turma da Câmara Superior, que analisa processos envolvendo IRPJ e CSLL, e em geral julga os casos sobre preços de transferência, o ex-conselheiro Caio Quintella foi substituído em março por Gustavo Fonseca. Além disso, a decisão do presidente do Carf, Carlos Henrique de Oliveira, de participar como julgador das sessões da Câmara Superior, levou a mudanças de posição na 1ª Turma na sessão de julho, com o colegiado formando maioria contra a tese do fisco em casos antes decididos pelo desempate pró-contribuinte.
Oliveira ainda proferiu um raro voto de qualidade (voto duplo do presidente) a favor do contribuinte. Apesar da instituição do desempate pró-contribuinte, o Ministério da Economia entende que o voto de qualidade é aplicável a situações que não envolvem autuação fiscal.
Condições para benefício fiscal
As discussões no Carf sobre as condições para pessoas jurídicas terem direito à redução do Imposto de Importação sobre veículos para transporte de pessoas com deficiência giram em torno da condição colocada pela lei 10.182/2001, de que as empresas comprovem a quitação dos tributos e contribuições federais para usufruir do benefício fiscal. Os processos discutem o momento em que o contribuinte deve comprovar a quitação exigida.
O entendimento da Câmara Superior é que a empresa beneficiada pelo regime automotivo teria o dever de comprovar a quitação a qualquer momento, inclusive durante o despacho aduaneiro, e não só quando é concedido o direito a participar do programa. Em 2018, foram julgados 28 processos sobre o tema na 3ª Turma da Câmara Superior do Carf. Em todos, a decisão foi favorável ao fisco. Não há acórdãos referentes a 2019 e 2020. Já em 2021, acórdãos dos seis processos julgados na Câmara Superior são desfavoráveis ao contribuinte. Os acórdãos são o 9303-011.199, 9303-011.599, 9303-011.203, 9303-011.204, 9303-011.201 e 9303-011.200.
Hold back
No caso do hold back, a discussão não é frequente no Carf. A pesquisa no sistema do tribunal retornou apenas 12 acórdãos no período de 2010 a 2021, e o tema chegou apenas uma vez à Câmara Superior, em 2019. A maioria das decisões é desfavorável ao contribuinte.
O hold back é um valor retido pela montadora no momento da venda à concessionária, mantido em um fundo, e, posteriormente, devolvido à concessionária. A discussão, no Carf, é se o valor compõe a receita bruta, integrando a base de cálculo do PIS e da Cofins. Os contribuintes entendem que o hold back compõe o preço do veículo e, portanto, faz jus à alíquota zero das contribuições. Já o entendimento majoritário dos conselheiros do tribunal é que se trata de bonificação, não sendo passível, assim, de exclusão da base de cálculo.
De 12 recursos julgados entre 2010 e 2021, dez tiveram decisão contrária ao contribuinte sobre o assunto, um teve provimento parcial e um não foi conhecido. No que teve provimento parcial, (acórdão 3802-000.494), foi afastada a exigência fiscal sobre o valor principal lançado na conta de hold back, mas mantida a cobrança sobre o recebimento de juros relativos ao valor principal.
No único julgamento sobre o tema na Câmara Superior, em 2019 (acórdão 9303-007.848), a relatora, conselheira Tatiana Midori Migiyama, votou pelo provimento do recurso do contribuinte. Ela entendeu que os valores recebidos a título de hold back não representam acréscimo ao patrimônio das concessionárias, sendo mera devolução de valores de sua propriedade. Portanto, não deveriam integrar a base de cálculo do PIS e da Cofins.
No entanto, venceu o voto divergente do ex-conselheiro Luiz Eduardo de Oliveira Santos. O julgador entendeu que os valores recebidos em razão do programa de hold back têm caráter contraprestacional. “Não vejo como afastar, no caso, o conceito de receita nem como considerar que eles [valores] se encontrem entre as exclusões previstas na legislação de regência dos tributos lançados”, observou. O placar ficou em 5×3 contra o contribuinte.
Estabelecimento equiparado a industrial
Já no caso dos temas gerais, a regra do desempate pró-contribuinte, que passou a vigorar em abril de 2020, tem revertido entendimentos antes desfavoráveis às empresas. Foi o caso da suspensão do IPI na saída de produtos de estabelecimentos equiparados a industriais. A suspensão é regida pelo artigo 29 da lei 10.637, que define, no inciso I do Parágrafo 1º, que o benefício também se aplica quando matérias-primas são adquiridas por estabelecimentos fabricantes de componentes, chassis, carroçarias, partes e peças de máquinas e veículos.
Em fevereiro, pela primeira vez, a 3ª Turma da Câmara Superior teve decisão favorável à suspensão do IPI não só para fabricantes, mas também para estabelecimento equiparado a industrial, em caso envolvendo uma montadora de automóveis. A Marelli Sistemas Automotivos Indústria e Comércio Brasil Ltda. foi autorizada a usufruir da suspensão do IPI ao realizar a importação dos produtos.
Pelo desempate pró-contribuinte, venceu o voto divergente da conselheira Tatiana Midori Migiyama, que considerou que a montadora é, em sua essência, uma indústria automotiva, tendo, portanto, o direito à desoneração das importações. O acórdão é o 9303-012.818.
Preços de transferência
Já a virada de posição relacionada à discussão sobre preços de transferência ocorreu em setembro do ano passado, quando a 1ª Turma da Câmara Superior decidiu, pelo desempate pró-contribuinte, que a Goodyear poderia excluir os valores do Imposto de Importação, frete e seguros da formação do preço praticado para fins de adoção do método PRL. Prevaleceu o entendimento do relator, conselheiro Caio Quintella, de que não existe previsão legal para a inclusão desses valores na definição do preço parâmetro. O acórdão é o de número 9101-005.767.
Os preços de transferência são um conjunto de métodos para definir o real valor em operações envolvendo bens ou serviços adquiridos por uma empresa de outra empresa vinculada a ela no exterior. O Preço de Revenda menos Lucro (PRL) e o Preços Independentes Comparados (PIC) são exemplos de métodos.
Pouco após o caso Goodyear, houve mais duas decisões sobre o tema favoráveis ao contribuinte, dessa vez envolvendo empresas do setor automotivo. Em processo da General Motors, julgado em outubro, excluiu-se despesas com frete, seguros e Imposto de Importação do cálculo dos preços de transferência (acórdão 9101-005.798). Em dezembro, foi julgado um caso da Ford Motors, que, além de excluir as despesas com frete, seguros e imposto, permitiu a mudança do método para cálculo do preço de transferência durante a fiscalização (acórdão 9101-005.916).
Planejamento tributário
Outro tema comum envolvendo empresas do setor automotivo é o planejamento tributário. Entre as formas de planejamento está a segregação das atividades da empresa com o objetivo de pagar menos tributos. A 3ª Turma da Câmara Superior vinha decidindo de forma favorável ao fisco nesses casos por voto de qualidade.
Foi o que aconteceu nos casos envolvendo a Procosa Produtos de Beleza S/A e a Avon Industrial Ltda., em 2019 (acórdãos 9303-008.545, 9303-008.546 e 9303-009.824). Mas, com o desempate pró-contribuinte, houve decisão favorável ao contribuinte pela primeira vez em novembro de 2021. O julgamento em que aconteceu a virada de entendimento envolvia uma empresa do setor automotivo (acórdão 9303-012.272).
Na ocasião, o colegiado analisou recurso da Fazenda contra decisão da turma baixa favorável à Via Itália Comércio e Importação de Veículos Ltda. A empresa decidiu separar a unidade importadora e a de distribuição, criando a Auto Rosso para ser a distribuidora dos veículos importados. Como a Auto Rosso estava situada em outra cidade, não pagava o IPI sobre essas vendas. O fisco, contudo, desconsiderou a operação da segunda empresa com base no artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), entendendo que se tratava de um negócio simulado.
No entanto, pelo desempate pró-contribuinte, a turma negou provimento ao recurso da Fazenda e afastou a autuação de R$30 milhões em valores atualizados. “O Carf entendeu que [a segregação de atividades] era um planejamento legítimo e que o artigo 116 do CTN, usado para desconsiderar a operação e justificar a autuação, só se aplicaria se ficasse comprovada a ilegalidade”, comenta o advogado Alan Chaves, sócio do Tanganelli e Chaves Advogados.
Segundo Chaves, a decisão é importante porque muitas empresas fazem um planejamento tributário semelhante. “O Carf já analisou dizendo que você só vai afastar a operação se ela não existir, se houver uma ocultação da realidade. Isso é excelente, pois deixa o planejamento tributário mais seguro”, afirma.
Mariana Branco – Repórter especializada em Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Fonte: JOTA