ANP decide ir ao STF contra decreto de SP que favorece grupo Cosan
Para agência, construção de gasoduto ligando o litoral à capital fere a lei do gás
Nicola Pamplona
Rio de Janeiro
A ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis) decidiu ir ao STF (Supremo Tribunal Federal) tentar derrubar decreto do governo de São Paulo que favorece a Compass, empresa de gás natural do grupo Cosan, alegando que os termos ferem a lei do gás aprovada pelo Congresso em março.
O decreto 65.819/2021 dá à Comgás o direito de construir um gasoduto ligando um terminal de importação de gás no litoral à região metropolitana de São Paulo. A distribuidora é controlada pela Compass, que também seria a dona do terminal de importação.
Para a ANP, a permissão configuraria verticalização das atividades proibida pela lei. Para driblar a restrição, o governo paulista classificou o gasoduto como parte dos ativos da distribuidora Comgás e não como um gasoduto de transporte de gás.
A procuradoria da ANP defende que o decreto do governador João Doria (PSDB) invade a competência da União para estabelecer normas gerais sobre o setor de energia e que a definição de critérios para classificar gasodutos deve ser tratada de modo uniforme em todo o território nacional.
O decreto, diz, \”extrapolou as competências legislativas e regulamentares do referido ente da federação\”. Em reunião nesta quinta-feira (27), a diretoria da ANP autorizou a procuradoria a iniciar os procedimentos para protocolar uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra o texto.
Aprovou ainda que iniciativas semelhantes que venham a ser adotadas por outros estados também sejam questionadas na Justiça. \”Quero destacar a importância dessa iniciativa para que seja obtida a necessária segurança jurídica, que é fator essencial para a atração de investimentos ao setor\”, disse o diretor-geral da agência, Rodolfo Saboia.
O governo de São Paulo disse, em nota, que a eventual judicialização do tema traz insegurança jurídica, afugentando investimentos, e \”prejudicará o diálogo e a busca de entendimento e harmonização na regulamentação e legislação federal e estaduais\”.
Na nota, o governo paulista diz ainda que \”não há qualquer interesse\” em verticalizar as operações da cadeia de gás no estado e que já manifestou ao MME (Ministério de Minas e Energia) que apoia a efetiva abertura desse mercado.
O gasoduto Subida da Serra é parte de uma proposta batizada de \”ilha de gás\”, que tornaria São Paulo independente da malha nacional de transporte do combustível. Com o terminal de importação de gás no litoral paulista, a Compass poderá fornecer o combustível para as três distribuidoras estaduais de gás encanado.
A ANP e grandes consumidores de energia reclamam que a verticalização dá grande poder de mercado à Compass, que já controla a maior distribuidora de gás do país e passaria a ter participação relevante também na venda do combustível.
A empresa já anunciou um contrato de venda à Comgás de 3,1 milhões de metros cúbicos por dia durante dez anos. O volume equivale a cerca de um quinto das vendas da distribuidora.
A necessidade de desverticalização das operações no mercado de gás foi um dos argumentos para que a Petrobras vendesse seus gasodutos e sua fatia na Gaspetro, empresa que controla 19 distribuidoras de gás encanado do país. As operações foram determinadas pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e respeitam os princípios da lei do gás.
A Gaspetro, porém, foi comprada pela própria Compass, em operação de R$ 2 bilhões concluída em julho de 2021, hoje sob análise do órgão de defesa da concorrência. ANP e grandes consumidores questionam a aquisição, mais uma vez alegando que a atuação na venda do gás e na distribuição vai contra o processo de abertura do setor.
Em ofício ao Cade, a Compass nega que atue em diferentes etapas da cadeia do gás, afirmando que seus contratos de venda do combustível ainda não estão operacionais —de fato, o contrato com a Comgás só entra em vigor em 2023— e que, por isso, a compra da Gaspetro não feriria neste momento a lei do gás.
A empresa diz ainda que há \”diversas barreiras e limites societários e estruturais que impedem qualquer prática anticompetitiva nesse sentido\” e que \”restrições regulatórias e o elevado nível de transparência do setor funcionam como verdadeiras limitações para quaisquer das preocupações levantadas\”.
\”É evidente a completa ausência de preocupações concorrenciais decorrente da operação, em especial porque envolve apenas monopólios naturais regulados, inexistindo qualquer sobreposição horizontal\”, diz a companhia, que pede a aprovação sem restrições da aquisição da Gaspetro.
Em manifestação ao Cade, a ANP diz que com a Gaspetro e a Comgás, a Compass tem poder de influência sobre a aquisição de até 64,7% de todo o volume de gás natural vendido no país. Em outubro, a empresa do grupo Cosan comprou ainda a distribuidora de gás encanado do Rio Grande do Sul.
A indústria diz que as condições acordadas entre Comgás e Compass mostram que a verticalização prejudicará o consumidor, já que, considerando os mesmos parâmetros de preço do petróleo, esse contrato seria o segundo mais caro do país, atrás apenas dos novos contratos de venda da Petrobras.
A Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia) calcula que, com o barril do petróleo a US$ 85 e o dólar a R$ 5,60, a Compass venderá o gás natural à distribuidora paulista por US$ 11,36 por milhão de BTU (unidade de poder calorífico), enquanto a Petrobras cobrará R$ 15,73.
A Golar Power, outra fornecedora que usa gás importado, fechou contratos de quatro anos em que o BTU sairia a US$ 10,20 nas mesmas condições de petróleo e câmbio. Já produtores de gás no país têm valores bem inferiores: a Shell chegou a US$ 7,12 e a Petrorecôncavo, a US$ 5,40 em contratos de dois anos.
Para grandes consumidores, o contrato da Compass com a Comgás prejudica o consumidor paulista ao restringir a busca por ofertas mais baratas no futuro. Em 2021, o governo de São Paulo decidiu prorrogar a concessão da distribuidora, garantindo mais 20 anos à Compass.
A decisão foi criticada pelos grandes consumidores e questionada também pela Seae (Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade), do Ministério da Fazenda, que vê riscos à competição no setor de gás e impactos nas tarifas pagas por consumidores de outros estados.
A Compass disse que não comentará o assunto.
Fonte: Folha de São Paulo