Medidas adotadas pelo governo para evitar apagão deixam rombo para o consumidor

Criação de uma bandeira tarifária mais cara não cobriu todas as despesas e governo irá fazer um novo empréstimo ao setor elétrico, que será pago pelos consumidores com juros

Marlla Sabino, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – As chuvas registradas nos últimos meses aliviaram a situação alarmante dos reservatórios, mas não devem refletir nas contas de luz dos brasileiros de imediato. As medidas adotadas pelo governo para evitar a todo custo apagões ou até mesmo um racionamento no ano passado, véspera das eleições presidenciais, afastaram o risco de problemas no fornecimento de energia, mas tiveram um alto custo para os consumidores, que terão que pagar as despesas, com juros.

Conforme mostrou o Estadão/Broadcast, somente o uso de usinas térmicas e a importação de energia da Argentina e Uruguai custaram R$ 16,8 bilhões até outubro. Mesmo a criação de uma bandeira mais cara, a escassez hídrica, não foi suficiente para cobrir todos os gastos e será necessário um novo aporte financeiro para cobrir todas as despesas. O empréstimo evitará um tarifaço neste ano, mas será pago com juros no futuro.

O diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Luiz Carlos Ciocchi, reconhece que as tarifas não devem ser barateadas no curto prazo. Isso porque o governo deve manter a cobrança de uma bandeira tarifária mais cara. “A bandeira escassez hídrica já está planejada até abril e cobre custos já incorridos. Se terminarmos a estação chuvosa em bons níveis, aí sim teremos um custo menor durante o ano”, explicou.

Os recursos arrecadados via bandeiras tarifárias até abril serão utilizados para cobrir os custos das ações referentes aos meses de setembro, outubro e novembro, que totalizam R$ 8,6 bilhões, e o déficit registrado antes da criação do novo patamar – que contabilizada R$ 5 bilhões até julho. O problema, no entanto, se prolongou. De acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a conta acumula um rombo de R$ 12,35 bilhões até novembro.

“A tarifa não vai cair. Tem [despesas] atrasadas por conta do despacho intensivo das usinas térmicas e da importação de energia, que não foi pago com a bandeira tarifária, mesmo no patamar máximo. As distribuidoras estão com contas a pagar de energia que já foi consumida e isso será jogado na tarifa. Consumimos uma energia à vista que vai ter que ser paga a prazo”, afirma o professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), Nivalde de Castro.

Outras despesas também devem encarecer a conta de luz ao longo de 2022. Além dos reajustes anuais das tarifas, as distribuidoras de energia preveem que o desconto na conta de luz para quem poupou energia nos últimos meses deve custar R$ 1,62 bilhão -que será pago pelo próprio consumidor. O programa foi lançado pelo governo em agosto, devido à crise hídrica. Já a contratação de térmicas em leilão emergencial que irão funcionar entre 2022 e 2025 deve custar R$ 39 bilhões.

Para o coordenador sênior do portfólio de energia do Instituto Clima e Sociedade (iCS), Roberto Kishinami, a conta de energia elétrica dos consumidores, que já está cara, independente da crise hídrica, pesará ainda mais nos próximos meses. “A conta pelo enfrentamento da crise vai chegar no final do ano para frente. O governo autorizou a tomada de empréstimo e que durante o ano vai acumular juros. O impacto começa com o pagamento desse financiamento e depois tem as térmicas contratadas no leilão emergencial. É uma bomba armada para o próximo governo.”

Ajuda do governo
O socorro financeiro foi permitido por meio de medida provisória, e será usado para bancar medidas emergenciais. A operação financeira deve evitar um “tarifaço” em 2022, ano de eleições presidenciais. Conforme mostrou o Estadão/Broadcast, o reajuste médio nas tarifas, inicialmente estimado em 21%, pode cair para 9,14%, a depender do valor da operação financeira. A projeção considera um montante da ordem de R$ 15 bilhões, como vem sendo aventado no setor nos últimos meses.

Segundo o pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (Ceri) da FGV, Diogo Lisbona, a redução do uso de térmicas ocorrida no último mês pode trazer, de alguma forma, um alívio nas contas, mas o saldo herdado da crise é muito alto. Para ele, a resposta à escassez dos reservatórios, dada a gravidade, demorou e só foram tomadas ações quando havia riscos de apagões. “Com todo receio de falta de energia, foram tomadas medidas que tem uma consequência financeira muito pesada para as tarifas\”, afirmou.

“Por um lado, devemos enfrentar um ano bem menos crítico do que 2021 e em relação ao que se esperava para 2022, mas não dá para cantar uma vitória. Primeiro, porque não há, já que as tarifas explodiram e a cada ano aumentam acima da inflação. O sinal tarifário é péssimo e a administração dos reservatórios também. A oscilação [do clima] é cada vez mais acentuada e ficamos dependendo da hidrologia e expostos a custos de geração mais elevados”, afirmou. “Hoje temos Estados inundados, mas o consumidor está pagando tarifa de escassez hídrica.”

O coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Instituto Brasileiro do Consumidor (Idec), Clauber Leite, ressalta que os impactos nas tarifas vão além dos custos da crise hídrica. Ele cita, por exemplo, as despesas dos “jabutis” – trechos estranhos ao texto original – aprovados na lei que permite a privatização da Eletrobras, a manutenção da contratação de usinas à carvão nos próximos anos, prevista em lei sancionada recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro, e as novas regras para quem gera energia, que resultou na criação de um novo encargo.

“Esse novo empréstimo é uma solução que, na verdade, está jogando um problema para frente. Não vemos ações de planejamento setorial que evitem a alta nas tarifas”, afirmou. “Embora tenha chovido, a conta vai continuar cara. Precisamos mudar a forma de lidar com a energia, principalmente com nossos reservatórios. A forma como o setor está estruturado favorece que os reservatórios sejam esvaziados e a tarifa aumente. Não vemos cenário de redução, o que deveria ser uma das principais preocupações das políticas públicas do governo.”


Fonte: Folha de São Paulo

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