Oferta de crédito pelos bancos pode ser redefinida por ‘mínimo existencial’
Ao ser regulamentado, patamar para evitar superendividamento de consumidores pode ter reflexos na análise de empréstimos
A carteira de crédito no Brasil está em crescimento, puxada principalmente pelas famílias. Elas estão gastando mais em consumo após o período crítico da pandemia e, assim, recorrendo ao cartão de crédito. Com isso, o saldo nas modalidades para pessoas físicas pode ter aumentado 1,8% em outubro – o acumulado em um ano seria de 19,5%, maior patamar desde 2011.
O resultado é estimado pela Pesquisa Especial de Crédito da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), que funciona como prévia dos resultados mensais de operações de crédito do Banco Central (BC), esperados para esta sexta-feira (26/11). Na última atualização, sobre setembro, o crédito às famílias somava R$ 2,7 trilhões. Porém, ao mesmo tempo em que a carteira avança, a inadimplência aparece estável, em 2,3%.
As operações “devem seguir impulsionadas pelo avanço da vacinação, reabertura dos estabelecimentos e recuperação do mercado de trabalho”, avalia a Febraban. Porém, os juros também estão aumentando. No crédito livre aos consumidores, a taxa média anual de juros das concessões atingiu 41,3% em setembro, o que significa aumento de 3,2 pontos percentuais em um ano – no cartão de crédito rotativo (em que o consumidor não quita a parcela toda), a variação foi 0,5 maior.
Preocupam os efeitos nos consumidores desse aumento de juros, sobretudo no cartão de crédito, modalidade com mais brasileiros endividados, somado à pressão inflacionária – que pode passar de 10% em 2021, segundo cálculos do mercado no relatório Focus, do BC. A combinação, além da baixa educação financeira, pode ser definidora para o aumento de brasileiros superendividados.
Problema para as famílias mergulhadas na situação, o superendividamento, bem como as medidas para evitá-lo, afetam também o mercado de crédito para consumidores como um todo – com o aumento da inadimplência, em última instância, por exemplo. A oferta de crédito e os juros praticados pelo mercado poderiam ser impactados se esse cenário se tornar a regra.
“Antes de o banco chegar a uma situação de ter um cliente superendividado, ele vai evitar essa situação ao máximo, incluindo maior risco em linha de crédito com mais chance de inadimplência. Então, isso tende a aumentar o custo de crédito”, explica Eric Brasil, sócio da consultoria Tendências, em São Paulo. A análise faz parte da rotina das instituições financeiras em empréstimos, mas deve se somar a novos ingredientes.
Nesse sentido, uma das ferramentas trazidas pela Lei 14.181/2021, aprovada com o intuito de combater o superendividamento, é a necessidade de haver, na repactuação de dívidas já contraídas e também no momento da concessão de crédito, a preservação de um “mínimo existencial” para o consumidor. O mecanismo ainda depende de regulamentação sobre como deve se dar na prática, mas, em certa medida, poderá redefinir como as instituições financeiras firmam contratos de dívida.
O mínimo existencial seria uma forma de garantir que o consumidor não terá condições de vida prejudicadas pelo endividamento e, ao mesmo tempo, que será capaz de arcar com empréstimos, mitigando os riscos de inadimplência. Desse modo, o patamar – que poderia ser por proporção da renda, um valor universal ou mesmo fatores abertos a serem considerados na situação de cada família – precisaria contemplar tanto a proteção de consumidores quanto o mercado de crédito.
“Faz sentido incluir na legislação dispositivos para proteção do devedor em situações extremas. Mas, em economia, sabemos que não existe almoço gratuito. Ou seja, quão maior for a proteção, menor a segurança do banco e menor a oferta de crédito ou maiores os juros”, afirma o economista Celso Toledo, diretor da LCA Consultores, em São Paulo. “Se a cláusula de proteção for ‘flexível’, isso é bom para o consumidor, mas prejudica a acurácia do cálculo do banco, ao aumentar o componente de incerteza”, completa.
Mínimo existencial na oferta de crédito
A demanda dos bancos na regulação do mínimo existencial é por previsibilidade e um patamar “não muito elevado”. Assim, o prognóstico, ou promessa, é de que a oferta de crédito não seria negativamente afetada pela garantia ao consumidor. Isso porque, a depender da quantidade de renda disponível reservada para o mínimo existencial, maior ou menor seria a renda aberta para dívidas.
“É importante ter uma regra que não atrapalhe o consumidor que pretende buscar crédito no futuro. O efeito prático de um valor alto é reduzir a concessão de crédito e os preços subirem”, diz Brasil, da Tendências, em São Paulo. Para ele, a manutenção de um patamar baixo, com valor fixo, seria relevante para garantir a possibilidade de a população de baixa renda ter acesso a crédito se preciso.
“Um modelo muito aberto de mínimo existencial faria com que os bancos considerassem mais arriscado o crédito ao trabalhador informal, por exemplo. Por outro lado, uma faixa fixa mínima não pode ser muito elevada, porque quem ganha menos ficaria fora”, completa. Para ele, o mínimo existencial na oferta de crédito deve ser focado em garantir condições de vida para famílias mais pobres, enquanto as estratégias de educação financeira e renegociação, também presentes na lei, poderiam dar conta no caso das famílias de renda mais alta.
Essas diferenças nas realidades das famílias, sobretudo em relação às fontes de renda, esbarram no objetivo de um mínimo existencial previsível na concessão de empréstimo, que permitiria aos bancos estimar os riscos com mais precisão. Por isso, outra alternativa seria a determinação de uma proporção fixa da renda que pode ser alocada em dívidas, em vez de um valor máximo.
Isso já existe para o crédito consignado e cartão de crédito para aposentados e pensionistas pelo INSS, geralmente estipulados em 35% e 5%, respectivamente. “Para famílias de até três salários mínimos, seria possível estabelecer um padrão mais ou menos uniforme, por volta de 35%. Isso evita que os consumidores busquem instituições à margem, que não seguem as regras”, afirma Manuel Enriquez Garcia, professor da Faculdade de Economia da USP e presidente da Ordem dos Economistas do Brasil. “E na renegociação, o mínimo poderia ser definido em conciliação, levando em conta critérios específicos das famílias.”
Crédito para baixa renda
Na legislação, o mínimo existencial não se confunde com as linhas da pobreza e extrema pobreza, abordadas na cobertura de programas sociais. O superendividamento também não é um comportamento relacionado necessariamente à população de baixa renda – embora ela esteja exposta a maiores riscos e crédito de menor qualidade.
“Como essas pessoas têm renda muito inconstante e variável, além de pouca poupança, quando surge uma emergência acabam se endividando. Porém, observamos que nem sempre elas são más pagadoras. Uma fatia de menos de um terço pode ser considerada desorganizada financeiramente”, afirma Maurício Prado, diretor executivo da consultoria Plano CDE, que acompanha hábitos de consumo nessas camadas.
Segundo ele, entre as principais dificuldades que fazem essa população se endividar está o acesso deficiente a boas condições de crédito. “A análise de crédito é muito baseada em garantia, por renda recorrente e imóvel, por isso saem prejudicadas. O olhar dos bancos a essas pessoas precisaria mudar”, comenta.
Nessa conta, há ainda o distanciamento dos serviços financeiros. “Existe um letramento cidadão pior para entender produtos e serviços. É a primeira geração de pessoas com conta em banco, que precisa ter produtos pensados para essa realidade e que quebrem a desconfiança”, explica Prado sobre o que evitaria a busca por crédito mais arriscado.
Letícia Paiva – Repórter em São Paulo
Fonte: JOTA